Quatro mitos e uma verdade sobre a Prática Baseada em Evidências (PBE):
1. A PBE surgiu na década de 1990 na medicina e, portanto, segue o modelo biomético de de doença-cura.
2. A PBE não é restrita a um campo de atuação específico, sendo aplicável em fisioterapia, políticas públicas e educação.
3. A PBE em Psicologia clínica é realizada apenas por psicoterapeutas que aplicam a Terapia Cognitivo-Comportamental.
4. A PBE enfatiza o uso da melhor evidência disponível, ou seja, resultados de Ensaios Clínicos Randomizados.
5. A PBE apresenta intervenções que envolvem seguir manuais de intervenção à risca, com pouca flexibilidade na aplicação ou consideração a nuances culturais e contextuais.
Você sabe qual das frases acima é a única verdadeira? Vamos avaliar cada frase a seguir.
1. A PBE surgiu na década de 1990 na medicina e, portanto, segue o modelo biomético de de doença-cura.
O modelo biomédico é uma abordagem que se concentra nos aspectos biológicos de uma doença ou enfermidade. Analisa os fatores físicos e biológicos como a principal causa das doenças, enquanto ignora os aspectos psicológicos e sociais. Esse modelo é frequentemente usado na medicina ocidental e tem sido a base para a pesquisa médica, diagnóstico e tratamento (Sheridan & Radmacher, 1992).
No início dos anos 1990, Guyatt e colaboradores (1992) publicam na Revista da Associação Médica Americana um artigo apresentando a Medicina Baseada em Evidências (MBE) como uma nova proposta para ensinar a prática da medicina. O novo paradigma que estava surgindo na prática médica não mais enfatiza a intuição, a experiência clínica assistemática e a fundamentação fisiopatológica como bases suficientes para a tomada de decisões clínicas. Passa a enfatizar a avaliação das evidências produzidas pela pesquisa clínica. A MBE passa a exigir novas habilidades da/o profissional, incluindo a busca eficiente de literatura e a aplicação de regras formais de evidências que avaliam a literatura clínica.
A mesma lógica seria aplicada para a literatura científica sobre transtornos mentais, nos quais profissionais da Psiquiatria e Psicologia buscariam artigos que investigam o efeito de um tratamento farmacológico ou psicológico (psicoterapia) sobre um determinado transtorno. Porém, essa lógica não pode ser transposta completamente para a psicologia, pois psicólogos atendem diferentes demandas, as quais não necessariamente se enquadrariam em um ou mais transtorno do Manual DSM-5. Observamos, por exemplo, problemas de relacionamento, em ambiente de trabalho, busca por autoconhecimento e tantas outras questões.
Assim, Apesar de suas origens na área médica, a Prática Baseada em Evidências, como agora chamamos de maneira ampla, não lida apenas com doenças ou transtornos e sim com a busca pelas melhores intervenções, procedimentos, técnicas, terapias etc. que ajudem o ser humano com diferentes demandas em diferentes contextos.
É um MITO que a PBE segue o modelo biomético de doença-cura porque teve suas origens na medicina.
2. A PBE não é restrita a um campo de atuação específico, sendo aplicável em fisioterapia, políticas públicas e educação.
Se você achou que esta frase era verdadeira, você acertou!
A Prática Baseada em Evidências tem sido incorporada por outras áreas de atuação nas últimas décadas (Leonardi et al., 2023). Em princípio, a PBE seria aplicável em qualquer área envolvendo o trabalho com seres humanos (ou seres vivos!) lidando com questões que sejam passíveis de investigação científica. Além da medicina, onde surgiu, e das mencionadas acima, o paradigma também pode ser aplicado em enfermagem, educação física, terapia ocupacional e psicologia, entre outros.
A Associação Americana de Psicologia (APA), por exemplo, define a PBE em Psicologia como a integração da melhor evidência de pesquisa com a expertise clínica no contexto das características, cultura e preferências do paciente. Essa definição se aproxima da definição adotada em 2001 pelo Instituto de Medicina, que definiu como a integração da melhor evidência disponível com a expertise clínica e os valores do paciente (APA, 2006). Assim, o objetivo da PBE em Psicologia é a promoção de uma prática psicológica efetiva e a melhoria da saúde pública ao aplicar princípios de avaliação psicológica, formulação de caso, relação terapêutica e intervenção com embasamento empírico. Para saber mais, leia o post Já ouviu falar sobre Prática Baseada em Evidências?
Você consegue imaginar como esse paradigma de tomada de decisões na prática profissional se aplicaria na área da educação, por exemplo?
3. A PBE em Psicologia clínica é realizada apenas por psicoterapeutas que aplicam a Terapia Cognitivo-Comportamental.
A Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) foi desenvolvida por Aaron Beck na década de 1960. Beck era um psicanalista que começou a notar que, durante suas sessões terapêuticas, seus pacientes tinham pensamentos que não estavam sendo expressos verbalmente. Esses pensamentos pareciam desempenhar um papel importante no bem-estar dos pacientes.
A TCC é um tipo de psicoterapia que se concentra mais em pensamentos e comportamentos presentes do que em experiências passadas. Beck propôs que a maneira como as pessoas percebem e interpretam suas experiências influencia como elas se sentem e se comportam. A TCC se concentra em ajudar os indivíduos a identificar e mudar padrões de pensamento negativo ou destrutivo, levando a uma mudança de atitude que pode resultar em uma vida sentida como mais satisfatória (Barbosa & Borba, 2010; Beck et al., 1979).
Desde sua criação, surgiram diversos programas de pesquisa para avaliar os efeitos desse modelo terapêutico como tratamento para uma variedade de transtornos, incluindo depressão, ansiedade, transtornos alimentares e problemas de sono. Se você acessar a página da Sociedade de Psicologia Clínica (Divisão 12) da APA – https://div12.org/treatments/ – verá uma série de tratamentos Cognitivos ou Cognitivo-Comportamentais para diferentes demandas com status de “strong research support”, ou seja, o nível de apoio empírico dessa terapia é classificado como forte ou robusto. Porém, apesar da grande evidência acumulada pelos tratamentos de TCC, precisamos levar alguns pontos importantes em consideração, os quais poderei destinchar em mais detalhes em artigos futuros.
1. Atualmente, a sigla TCC tem sido usada como o termo guarda-chuva “Terapias Cognitivas e Comportamentais” que englobaria todas as terapias comportamentais e terapias cognitivas, além da terapia cognitivo-comportamental clássica (Beckiana). Vide a RBTCC – Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva.
2. Há muitas terapias comportamentais (com base analítico-comportamental e fundamentadas em filosofias como behaviorismo radical ou contextualismo funcional) também no rol de terapias com evidência de eficácia. Assim como existem terapias fundamentadas em outras abordagens teóricas em psicologia com algum nível de suporte empírico.
3. Ecletismo teórico involve uma incompreensão nas premissas básicas das teorias psicológicas vigentes, ecletismo técnico com uma forte base teórico-conceitual, por otro lado, pode inclusive ser desejável, quando o uso da técnica é pautado pelos objetivos terapêuticos e sua evidência de eficácia. Involve um amplo conhecimento, expertise clínica e criatividade por parta da/o profissional.
4. Ausência de evidência não é o mesmo de evidência de ausência. Resumidamente, ainda não temos pesquisas suficientes acumuladas sobre muitos modelos terapêuticos, seja por falta de interesse nessa busca por evidências (ex. psicanálise, gestalt terapia), seja por excesso de confiança translacional (vide Leonardi & Meyer, 2016), seja pelos critérios utilizados para definir o que seria ciência e como estabelecer a “melhor evidência disponível” – veja uma breve discussão sobre este último ponto abaixo.
É um MITO que a PBE em Psicologia clínica é realizada apenas por psicoterapeutas que aplicam a Terapia Cognitivo-Comportamental. A psicóloga que se pauta pela PBE saberá observar e avaliar os dados de pesquisa além de sua visão teórico-conceitual.
4. A PBE enfatiza o uso da melhor evidência disponível, ou seja, resultados de Ensaios Clínicos Randomizados.
Em primeiro lugar, os três pilares da PBE listados no item 2 não são mais enfatizados, importantes ou se sobrepõe uns aos outros. Porém, no texto A Prática Baseada em Evidências e a Formação da Analista do Comportamento eu sinalizo que, como docente de futuros e atuais profissionais de Psicologia, vejo pouca ênfase na compreensão da pesquisa clínica e portanto prefiro focar no ensino dessas habilidades de compreensão de metodologia e leitura de artigos científicos. Um dos motivos é que a pouca compreensão de como se faz ciência aplicada leva a MITOS como o descrito aqui.
Embora Ensaios Clínicos Randomizados (ECRs) sejam uma fonte importante de evidências na PBE, não são a única. Evidências podem vir de uma variedade de fontes, incluindo ECRs, estudos observacionais, estudos de caso (leia o post Estudo de Caso: Não é de se jogar fora), entre outros. Muito esquecida e incompreendida fora (e dentro!) da comunidade de analistas do comportamento, o Delineamento de Caso Único (DCU) também é um delineamento experimental de pesquisa que observa o efeito de intervenções sobre o comportamento, a diferença crucial sendo a comparação do indivíduo com ele mesmo e não com outro grupo de indivíduos com características semelhantes (Leonardi, 2017).
– O mais importante a ser considerado aqui é: Não tenha metodologia de estimação!
– Mas, Dra. Cambraia, não podemos publicar isso!
– Tá, então escreve aí: Diferentes delineamentos de pesquisa (metodologias) são mais ou menos adequados para responder diferentes perguntas de pesquisa.
5. A PBE apresenta intervenções que envolvem seguir manuais de intervenção à risca, com pouca flexibilidade na aplicação ou consideração a nuances culturais e contextuais.
Intervenções baseadas em PBE muitas vezes utilizam manuais como guias para o tratamento, mas isso não significa que eles devem ser seguidos à risca. Se você chegou até aqui, já sabe que a experiência clínica e o contexto do paciente são componentes fundamentais do processo de tomada de decisão na PBE.
Isso significa que a intervenção é sempre individualizada, ou seja, deve ser adaptada para atender às características, cultura e preferências do paciente. É também vital considerar o contexto da/o paciente. Isso pode incluir o seu ambiente social, econômico, ou mesmo o seu estado de saúde física e mental. Um(a) analista do comportamento jamais seguirá um manual à risca sem realizar uma formulação de caso e analises funcionais molares e moleculares dos comportamentos específicos da pessoa sendo atendida e isso está em conformidade com o paradigma da PBE.
Além disso, o atendimento no setting natural, terapêutico, tem características importantes que o diferenciam do ambiente de pesquisa e devem ser consideradas. A PBE também reconhece a importância da avaliação contínua do progresso do paciente ou cliente, assim como a necessidade de ajustar o plano de intervenção com base nessa avaliação. Isso permite que as intervenções sejam dinâmicas e flexíveis, permitindo o máximo de eficiência em tempo real. Em outro post podemos compreender melhor a Prática Baseada em Dados.
Em suma, a Prática Baseada em Evidências é um paradigma de tomada de decisões que integra a melhor evidência disponível, a experiência clínica e as características e preferências do paciente. Esta prática não é apenas um conjunto de diretrizes, mas uma abordagem que exige a consideração cuidadosa de três componentes fundamentais. O primeiro componente é a evidência de pesquisa, que deve ser atual e relevante. O segundo é a experiência clínica do profissional, que permite a interpretação e a aplicação eficaz da evidência. O terceiro componente é a consideração das características individuais e preferências do paciente. Esta prática é aplicável em várias áreas de atuação que lidam com seres humanos, desde a medicina e psicologia até a educação e trabalho social, demonstrando sua versatilidade e importância na promoção de melhores resultados e na melhoria do bem-estar.
Referências
APA Presidential Task Force on Evidence-Based Practice. (2006). Evidence-based practice in psychology. The American Psychologist, 61(4), 271-285. https://www.apa.org/pubs/journals/features/evidence-based-statement.pdf
Barbosa, J. I. C. & Borba, A. (2010). O surgimento das terapias cognitivo-comportamentais e suas consequências para o desenvolvimento de uma abordagem clínica analítico-comportamental dos eventos privados. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 12, 60-79. https://doi.org/10.31505/rbtcc.v12i1/2.416
Beck, A. T., Rush, A. J., Shaw, B. F. & Emery, G. (1979). Cognitive therapy of depression. New York: The Guilford Press Guyatt, G., Cairns, J., Churchill, D., Cook, D., Haynes, B., Hirsh, J., … & Tugwell, P. (1992). Evidence-based medicine: a new approach to teaching the practice of medicine. JAMA, 268(17), 2420-2425. doi:10.1001/jama.1992.03490170092032
Leonardi, J. L. (2017). Métodos de pesquisa para o estabelecimento da eficácia das psicoterapias. Interação em Psicologia, 21(3). Retirado de: https://www.researchgate.net/profile/Jan-Leonardi/publication/321714484_Metodos_de_pesquisa_para_o_estabelecimento_da_eficacia_das_psicoterapias/links/5a2d2676aca2728e05e0ce7e/Metodos-de-pesquisa-para-o-estabelecimento-da-eficacia-das-psicoterapias.pdf
Leonardi, J. L., Mácimo, T., Bacchi, A. D., & Josua, D. (2023). Ciência, Análise do Comportamento e a Prática Baseada em Evidências em Psicologia. Perspectivas em Análise do Comportamento, 14(1), 097-119. https://doi.org/10.18761/PACCha0a1
Leonardi, J. L., & Meyer, S. B. (2016). Evidências de eficácia e o excesso de confiança translacional da análise do comportamento clínica. Temas em Psicologia, 24(4), 1465-1477. https://doi.org/10.9788/TP2016.4-15Pt