Entre evidências e prática: a complexidade da psicoterapia como ciência

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A Psicologia, como ciência e prática, abrange uma diversidade de teorias e abordagens que buscam compreender o comportamento e os processos mentais humanos. No entanto, essa pluralidade levanta uma questão fundamental: todas as ideias e práticas são igualmente válidas na Psicologia? Se, por um lado, a disciplina valoriza diferentes perspectivas teóricas, por outro, a necessidade de rigor metodológico e fundamentação empírica impõe limites ao que pode ser considerado conhecimento científico.

Diferentes ideias conduzem a diferentes práticas, e diferentes práticas geram diferentes resultados. Seriam todos esses resultados benéficos?

A crença de que “todas as ideias são válidas” pode ter consequências prejudiciais, especialmente quando aplicada a práticas psicológicas. Intervenções sem base científica podem levar a danos reais aos pacientes e ao público em geral. Um exemplo disso é a Terapia de Conversão Sexual, uma prática pseudocientífica que tenta alterar a condição sexual de indivíduos. Essa abordagem foi amplamente condenada por associações de psicologia, pois não apenas carece de embasamento empírico, mas também está associada a traumas e efeitos psicológicos adversos (APA, 2009).

Esse tipo de prática não apenas prejudica diretamente os indivíduos, mas também contribui para a disseminação de desinformação dentro da Psicologia. Lilienfeld (2010) observa que o crescimento de mitos populares, como a ideia de que usamos apenas 10% do cérebro ou que a escrita catártica sempre reduz o estresse, evidencia a necessidade de um pensamento crítico mais rigoroso dentro da disciplina.

Esse cenário de desinformação e debate sobre a cientificidade da Psicologia não é recente. Em 1952, Hans Eysenck, psicólogo e teórico da personalidade, já questionava a eficácia das psicoterapias disponíveis. Em seu artigo The Effects of Psychotherapy: An Evaluation (Os efeitos da psicoterapia: uma avaliação, tradução livre), ele argumentou que nenhuma abordagem interventiva da época demonstrava ser mais eficaz do que a simples passagem do tempo.

Diante destas contingências científicas e afirmações do teórico, iniciou-se uma corrida experimental na psicologia, estimulando a busca por evidências acerca dos resultados das diferentes psicoterapias. Entre as décadas de 1950 e 1970, centenas de pesquisas clínicas foram realizadas com o objetivo de comparar a validade entre as diferentes psicoterapias (Leonardi et al., 2024). No decorrer dessas investigações, Luborsky e Singer (1975) concluíram que “de agora em diante, nós deveríamos parar de dar atenção à forma do tratamento ao encaminhar pacientes para psicoterapia” (p. 1005, tradução livre).

A conclusão de Luborsky e Singer (1975) levou ao que ficou conhecido como o Veredito do Pássaro Dodo, inspirado em Alice no País das Maravilhas, em que todos os competidores são declarados vencedores. Esse conceito sugere que diferentes abordagens terapêuticas têm eficácia semelhante, desde que aplicadas por terapeutas bem treinados. Isso impulsionou novas investigações sobre os fatores comuns que tornam a psicoterapia eficaz (Leonardi et al., 2024).

Após os anos 1970, a busca por evidências continuou, e novas metodologias foram desenvolvidas para avaliar a eficácia das abordagens. O movimento em prol da Psicoterapia Baseada em Evidências (PBE) começou a ganhar força, com a inclusão de ensaios clínicos randomizados e metanálises para estabelecer quais terapias eram mais eficazes para quais transtornos específicos.

Apesar das evidências sugerirem que muitas terapias são igualmente eficazes, o debate sobre a necessidade de integrar diferentes abordagens ainda persiste. A Terapia Cognitivo-Comportamental, por exemplo, consolidou-se como uma das mais pesquisadas; mas, abordagens integrativas, como a Terapia Comportamental Dialética (DBT) e a Terapia de Esquema, combinam elementos de diferentes modelos para maximizar a eficácia do tratamento.

Entretanto, precisamos pensar sobre: o que estamos chamando de “evidência” em psicoterapia?

O conceito de evidência na psicoterapia evoluiu ao longo do tempo, acompanhando as mudanças na ciência e na metodologia de pesquisa. Inicialmente, as evidências eram buscadas por meio de relatos clínicos e observações subjetivas dos terapeutas. No entanto, com o avanço do rigor científico na Psicologia, passou-se a priorizar estudos controlados e replicáveis.

Atualmente, a Psicoterapia Baseada em Evidências (PBE) segue critérios estabelecidos por órgãos como a American Psychological Association (APA) e o National Institute for Health and Care Excellence (NICE), os quais classificam as terapias em níveis de evidência com base em diferentes tipos de estudo. Esses critérios incluem:

1. Ensaios clínicos randomizados (ECRs): são considerados o “padrão-ouro” na pesquisa psicológica. Neles, os participantes são aleatoriamente designados para diferentes grupos (por exemplo, um que recebe a terapia testada e outro que recebe um placebo ou outro tratamento). Isso permite comparar a eficácia da intervenção de forma controlada.

2. Metanálises: consistem na análise estatística de vários estudos sobre um mesmo tema para identificar tendências gerais e avaliar a eficácia das terapias com maior precisão.

3. Estudos de caso e séries de casos: embora menos rigorosos do que os ECRs, esses estudos ainda são usados para documentar padrões clínicos e sugerir hipóteses para pesquisas futuras.

Apesar da importância da validação científica, esse modelo de evidências utilizado apresenta alguns problemas. Diferentemente da medicina, em que um medicamento pode ser testado de forma objetiva, a psicoterapia envolve variáveis subjetivas, como a relação terapêutica e a motivação do paciente. Isso torna difícil padronizar tratamentos e medir seus efeitos com a mesma precisão que em estudos biomédicos.

Além disso, a PBE propõe que a decisão terapêutica seja fundamentada na melhor pesquisa científica disponível, na expertise clínica do terapeutae e nas preferências e características do paciente. Dentro desse modelo, o relato verbal do cliente desempenha um papel fundamental para avaliar a eficácia do tratamento e orientar intervenções. No entanto, essa abordagem apresenta desafios significativos, tanto em termos metodológicos quanto epistemológicos.

Diferente de exames médicos objetivos, como testes laboratoriais ou neuroimagens, a avaliação do progresso na psicoterapia depende, em grande parte, do que o paciente sente e relata sobre suas próprias experiências. Isso traz desafios como:

  1. Influência da memória e da percepção:  o ser humano reconstrói suas memórias constantemente, e um paciente pode relatar mudanças não necessariamente porque melhorou, mas porque sua percepção sobre o problema foi alterada ao longo do processo terapêutico.
  2. Desejo de agradar o terapeuta: alguns pacientes podem, consciente ou inconscientemente, relatar melhorias para corresponder às expectativas do profissional ou para justificar o investimento emocional e financeiro na terapia.
  3. Dificuldade de verbalização emocional: nem todos os pacientes conseguem expressar verbalmente suas mudanças internas. Algumas melhoras podem ser mais comportamentais do que subjetivas, o que pode levar a subestimação do impacto da terapia caso apenas os relatos verbais sejam considerados.

Além disso, o contexto da terapia influencia diretamente o que o paciente relata. O ambiente terapêutico é um espaço onde a aliança terapêutica e a relação com o profissional podem moldar a forma como o paciente se expressa. Se um paciente acredita que uma determinada abordagem funcionará, ele pode relatar melhorias que correspondam a essa expectativa, mesmo sem uma mudança objetiva significativa. O que chamaríamos de efeito placebo.

Uma outra situação seria a de um paciente que pode relatar progresso em uma sessão e retrocesso na próxima, dependendo de fatores externos (como eventos estressantes). Isso pode dificultar a mensuração real da eficácia da terapia.

Assim, se a psicoterapia busca se consolidar como uma disciplina científica baseada em evidências, a dependência excessiva do relato verbal como critério de eficácia levanta preocupações metodológicas:

  1. Dificuldade de replicabilidade: como os relatos subjetivos são altamente variáveis, sua replicação em diferentes contextos clínicos e estudos se torna um desafio, dificultando a padronização de resultados (Ioannidis, 2005).
  2. Viés de confirmação: terapeutas podem interpretar os relatos dos pacientes de maneira seletiva, favorecendo evidências que confirmam a eficácia de suas abordagens, um fenômeno amplamente estudado na psicologia cognitiva (Nickerson, 1998).
  3. Comparação entre abordagens terapêuticas: se diferentes linhas terapêuticas utilizam critérios subjetivos distintos para avaliar a eficácia de seus métodos, torna-se difícil estabelecer comparações confiáveis entre abordagens (Wampold, 2001).

Não obstante, para tornar tudo mais complexo, precisamos ainda pensar sobre o que seria o objetivo de um processo psicoterapêutico para considerar a melhora de um caso. Afinal, sentimentos desagradáveis, como tristeza, medo ou frustração, são parte inerente da experiência humana. Eles não são, por si só, sintomas de doenças mentais ou transtornos, mas reflexos das contingências às quais cada pessoa está exposta. Nesse sentido, a psicoterapia não busca eliminar tais sentimentos, mas sim compreender os contextos que os geram e oferecer ferramentas para lidar com eles de forma mais funcional e adaptativa.

Uma das funções principais da psicoterapia é auxiliar o paciente a desenvolver repertórios comportamentais mais eficazes, que incluam tanto o enfrentamento quanto a aceitação de situações inevitáveis. Isso significa que a terapia ajuda a pessoa a reconhecer quando e como agir para transformar aspectos da sua vida que estão ao seu alcance e, ao mesmo tempo, a aceitar aquilo que não pode ser mudado. Essa abordagem promove uma postura mais realista e saudável diante da vida, evitando tanto a resignação passiva quanto o sofrimento advindo de expectativas irreais de controle. E tudo isso é muito difícil de ser reduzido a escalas padronizadas e relatos verbais de melhora.

Nesse sentido, precisamos nos aprofundar nos princípios básicos, ter uma clara compreensão da natureza monista, selecionista e funcional do nosso objeto de estudo, e quais melhores métodos para estudá-lo. Caso contrário, ficaremos à deriva, gritando “evidências terapêuticas” apenas para nos encaixarmos naquilo que nos convém.  

 Referências:

American Psychological Association. (2009). Resolution on appropriate affirmative responses to sexual orientation distress and change efforts. Washington, DC: American Psychological Association.

Ioannidis, J. P. A. (2005). Why most published research findings are false. PLoS Medicine, 2(8), e124. https://doi.org/10.1371/journal.pmed.0020124

Lilienfeld, S. O., Ammirati, R., & David, M. (2012). Distinguishing science from pseudoscience in school psychology: Science and scientific thinking as safeguards against human error. Journal of School Psychology, 50(1), 7–36. https://doi.org/10.1016/j.jsp.2011.09.006

Nickerson, R. S. (1998). Confirmation bias: A ubiquitous phenomenon in many guises. Review of General Psychology, 2(2), 175–220. https://doi.org/10.1037/1089-2680.2.2.175

Wampold, B. E., & Imel, Z. E. (2015). The great psychotherapy debate: The evidence for what makes psychotherapy work (2nd ed.). Routledge. https://doi.org/10.4324/9780203582015

Como citar este artigo (APA):

Carmo, P. H., & Nascimento, L. S. (2025, 7 de fevereiro). Entre evidências e prática: a complexidade da psicoterapia como ciência. Blog do IBAChttps://ibac.com.br/entre-evidencias-e-pratica-a-complexidade-da-psicoterapia-como-ciencia/

Artigo escrito em colaboração com:

Paulo Henrique B. do Carmo

Psicólogo clínico (CRP 03/3583), supervisor clínico, professor universtário e escritor.

Escrito por:

Luana Nascimento

Graduada em Psicologia (FAT); Pós-graduanda em Análise Comportamental Clínica (IBAC); Formação em Análise do Comportamento Aplicada (FAT); Formanda em Sexualidade Clínica (CRESCER); e Integrou a participação na Revista Poliglosa sobre práticas culturais feministas (Nuremberg, Alemanha).

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