Uma Conversa entre a Comunicação Não Violenta (CNV) e a Análise do Comportamento

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A Comunicação Não Violenta (CNV) foi criada pelo psicólogo Marshall Rosenberg (1934-2015) no início da década de 1960. No primeiro capítulo de seu livro, Rosenberg (1999) descreve como contextos de violência que vivenciou e como a sua história de vida influenciaram a sua percepção da importância da comunicação verbal para a resolução de conflitos, o que contribui, então, para a criação de uma forma de se comunicar que tem como princípio a não violência.

Embora a CNV tenha raízes na psicologia humanista, ela pode ser uma ferramenta interessante para a/o terapeuta analista do comportamento, porque propõe uma forma de resolução de conflitos para aprimorar relacionamentos interpessoais. Portanto, a CNV pode auxiliar cliente e terapeuta quando é identificado um objetivo terapêutico de aumento de repertório de comunicação assertiva ou diminuição de comportamentos agressivos.

O ensino da CNV também pode aumentar o repertório de autoconhecimento do cliente, uma vez que essa prática ensina a observar com cuidado como comportamentos de outras pessoas ou situações podem trazer diferentes sentimentos, nas palavras de Rosenberg a observação permite saber o que enriquece ou não a vida de cada um. Ainda que o autor não a apresente desta forma, na perspectiva comportamental, essa observação permite a identificação das relações de contingência entre eventos ambientais e os sentimentos da pessoa, o que é um objetivo terapêutico comum (Quinta, 2018). A partir dessa identificação, é necessário desenvolver o repertório de assertividade para expressar o que se quer em diferentes contextos.

Este texto tem como objetivo analisar os principais aspectos da CNV a partir de um viés analítico-comportamental, especialmente pelo enfoque do comportamento verbal descrito por Skinner (1957), e será dividido em três publicações. Assim, pretendo examinar as convergências e divergências entre as duas propostas, bem como complementar a visão da CNV pelo aspecto funcional.

Ao passo que outras formas de estudar a linguagem priorizam descrições topográficas, como a fonética ou a gramática, Skinner propõe um estudo científico do comportamento verbal, por meio da análise funcional. Ou seja: identificar os estímulos antecedentes do comportamento, a resposta verbal e as consequências que a mesma produz no ambiente, a partir da tríplice contingência. Skinner delimitou o comportamento verbal como o comportamento cujas consequências são mediadas por outra pessoa, e o comportamento não verbal como aquele que age diretamente no mundo físico. Por exemplo, ao apertar um botão do controle remoto, esta resposta é reforçada por ligar a televisão. O comportamento verbal, por outro lado, não afeta o mundo físico diretamente. Em uma situação parecida, um falante poderia pedir que alguém ligasse a televisão, a televisão ligada é o reforço do comportamento de pedir, ainda que não tenha sido produzido diretamente por ele.   

A abordagem de Skinner também deixa de lado vertentes de estudos de comunicação que a definem como “transmissão de ideias” ou “compreensão de significados das palavras” e passa a buscar como o comportamento de pessoas podem alterar o comportamento de outras pessoas e em quais ocasiões é mais provável que aconteçam. Por exemplo, pedir que a televisão seja ligada é mais provável de ocorrer na presença de um ouvinte quando a televisão estiver desligada e no horário em que passa um programa que reforce o comportamento do falante. O ouvinte “compreende o significado” ou “recebeu a ideia” na medida em que o pedido do falante é um antecedente para o seu comportamento de ligar a televisão.

Skinner distinguiu diferentes tipos de operantes verbais, que são classificados a partir da principal variável da qual o comportamento é função. Para definir um operante verbal, é preciso analisar as variáveis ambientais que influenciam sua ocorrência, e não apenas as palavras que compõem uma frase. Assim, as definições de mando, tato e mando disfarçado de tato irão permear esta discussão sobre a CNV, para que ela possa ser compreendida dentro das relações funcionais.

O mando é um operante verbal que especifica qual consequência é reforçadora para a resposta e está sob controle funcional de operações motivadoras. As operações motivadoras são variáveis ambientais que possuem efeito estabelecedor do reforço: tornam um estímulo mais efetivo como reforço, têm efeito evocativo e tornam mais prováveis comportamentos que tiveram como consequência aquele estímulo na história do indivíduo. O mando estabelece uma relação especial e única entre a forma e o reforço e é particularizado pelas variáveis reforçadoras que são especificadas.

É interessante destacar que Skinner ponderou que o mando não parece trazer qualquer tipo de consequência reforçadora para o ouvinte e disse que a maneira como o mando é emitido pode mudar a probabilidade de o ouvinte fornecer a consequência para o falante, pois o reforço depende das práticas da comunidade verbal. É exatamente nesse ponto que as técnicas da CNV podem contribuir para uma comunicação mais eficaz.

O tato é um operante verbal que está sob controle de estímulos não verbais do mundo físico. Difere-se do mando porque o tato não está sob controle de operações estabelecedoras e não especifica reforço, ao contrário, é mantido por reforço generalizado. A presença de um estímulo não verbal, que pode ser um objeto ou um acontecimento, evoca ou cria situação para o reforço do operante verbal tato. O tato permite que o ouvinte fique sob controle de estímulos do ambiente que antes do falante emitir o tato não tinham efeito sob seu comportamento.

Não se deve definir mandos como pedidos ou tatos como descrições, ainda que comumente os pedidos sejam um tipo de mando e que descrições possam ser tatos. Esse tipo de definição estaria incorreto porque não leva em conta as variáveis do ambiente que controlam a emissão de mandos e tatos. A correta classificação de um operante verbal, leva em conta os elementos da tríplice contingência.

Skinner já levava em consideração que a topografia do comportamento verbal é importante para a comunicação e definiu também o mando disfarçado de tato. Este operante verbal acontece quando a fala tem uma topografia de tato, ou seja, faz referência a um estímulo antecedente não verbal, mas a sua função é de mando, porque a fala está sob controle de reforçadores específicos a serem oferecidos pelo ouvinte. Por exemplo, quando está calor na sala de aula e o professor tem o controle do ar condicionado, o aluno pode dizer “como está quente aqui”. Topograficamente a fala tem correspondência com o antecedente de um estímulo não verbal, a temperatura da sala, mas a depender da história de vida desse aluno, se falas como essas são seguidas de consequências específicas, como o professor ligar o ar condicionado, o operante é na verdade um mando disfarçado, por conta das consequências que produz.

Os operantes verbais apresentados irão ajudar a analisar funcionalmente o ponto de partida da CNV que é o princípio de estabelecer com o outro uma relação de compaixão. A CNV ensina 4 componentes da comunicação que podem facilitar que o ouvinte tenha compaixão pelo falante, como também ensina que o falante receba o que lhe é dito a partir desses 4 componentes para que tenha compaixão pelo outro. Os 4 componentes são: observação, sentimento, necessidade e pedido. Nesse sentido, a CNV é marcada por um diálogo em que se tenha a escuta do outro, com empatia.

Ainda que o criador da CNV não a apresente a partir de um modelo funcional, é possível compreender que esta propõe um modo de comportamento verbal que tenha um impacto no ouvinte de produzir compaixão e que seja evitado o comportamento verbal que tenha impactos como culpa, resistência ou medo. Estas sensações são derivadas das contingências que o falante estabelece com o ouvinte.

A compaixão pode ser compreendida na análise do comportamento como o efeito de uma contingência. A fala de alguém pedindo ajuda pode ser reforçada positivamente pela ajuda do ouvinte, assim como pode também produzir o sentimento de compaixão no ouvinte. No entanto, o pedido de ajuda também pode produzir no ouvinte outros sentimentos, como culpa ou rebeldia, ainda que o ouvinte disponibilize o reforço especificado. Portanto, a CNV busca descrever como topografias de comportamento do falante e quais operantes verbais podem gerar no outro o sentimento de compaixão.

Por exemplo, uma esposa diariamente pede ao seu esposo que lave a louça após o jantar. A fala da esposa seria um mando, visto que a resposta da esposa está sob controle de operações estabelecedoras aversivas da sujeira e estabelece um reforço específico: louças lavadas. Este mando pode assumir diferentes topografias como: “lave a louça”, “é a sua vez de lavar a louça”, ou até mesmo “você pode lavar a louça, por favor?”, ainda poderia ser emitido como um mando disfarçado de tato “tem muita louça suja na pia”. O argumento de Rosenberg (1999) é que a topografia do mando provocará diferentes efeitos no ouvinte, e que podem aumentar ou diminuir a probabilidade das consequências reforçadoras para o falante. Mais importante, o efeito produzido no ouvinte determina a qualidade dessa interação que afeta o relacionamento das duas pessoas.

Em uma visão comportamental, os 4 componentes da CNV podem ser compreendidos da seguinte forma:

  • A observação consiste em um tato do ambiente público,
  • O sentimento em um tato de eventos privados de sensações,
  • A necessidade em um tato de eventos privados, história de vida ou de operações estabelecedoras e
  • O pedido em um mando.

Veja que, no exemplo da esposa que pede que a louça seja lavada, acontece apenas o mando. Para a CNV, o mando não provoca compaixão no outro. Apenas uma fala estruturada nos quatro componentes terá esse efeito no ouvinte.

É fácil compreender essa explicação de modo funcional. No mando, é especificado para o ouvinte apenas o reforçador desejado pelo falante. Quando se utiliza a CNV, o ouvinte tem acesso a um maior número de variáveis que controla o comportamento do falante. Por exemplo, suponha que no exemplo a esposa diga: “Quando vejo as louças sujas na pia, eu fico triste, porque eu gosto de uma casa limpa e organizada. Você poderia lavar a louça, por favor?” Veja que agora o esposo entende que o mando emitido pela esposa é evocado no contexto de louças sujas na pia, que louças sujas na pia geram uma operação estabelecedora de privação de limpeza, e que este contexto elicia sentimentos de tristeza. Conhecer as variáveis particulares a esse falante podem deixar o ouvinte mais sensível a ele.

Os componentes da CNV são pensando de forma que não haja julgamentos ou avaliações sobre as atitudes ou sobre a outra pessoa. Julgamentos e avaliações podem ser compreendidos, de maneira mais simplista, como tatos de alguma propriedade do estímulo. No entanto, essas propriedades do estímulo passam a controlar o comportamento do falante por causa do contexto cultural, história de vida, regras, dentre outros, e podem não ser compartilhadas por todas as pessoas. O tato “a casa está suja” pode acontecer a partir de diferentes intensidades de sujeira para diferentes falantes, por exemplo.  

Além disso, julgamentos e avaliações não especificam todas as variáveis que controlam o comportamento do falante. Se a esposa dissesse “você é um porco que sempre deixa a louça suja”, “você nunca faz nada para me ajudar, eu sempre tenho que lavar a louça” o ouvinte, o esposo, não teria acesso aos eventos privados da esposa e nem ao estímulo ambiental que evoca o mando. Pior ainda, ele estaria como audiência para tatos cujos estímulos antecedentes são seus próprios comportamentos, avaliados como inadequados nesse contexto. Para muitas pessoas, julgamentos e avaliações são estímulos aversivos: aumentam a frequência de comportamentos de esquivas ou fugas que o removem ou punem positivamente uma resposta quando são produzidos (Moreira e Medeiros, 2007). Por isso, essas falas aumentariam as chances do marido se esquivar da situação em que é criticado, e que se sente inadequado, ou de se esquivar da própria esposa, a partir de um pareamento entre suas falas e ela própria que tem como resultado torná-la um estímulo aversivo.

Logo, se o esposo passa a lavar a louça todos os dias após esses julgamentos emitidos pela esposa (os julgamentos aqui têm a função de mando), é provável que ele o faça para evitar os julgamentos e críticas da esposa, portanto, uma relação operante de reforço negativo. Se ouvíssemos o relato dele, é possível que ele descrevesse que lava a louça para não ouvir reclamações, ou porque se sente culpado ou ainda porque tem medo da esposa brigar com ele ou o deixar – a explicação de Rosenberg se baseia nesses efeitos. No caso de contingências aversivas como essa, também é esperado que ocorra o contracontrole, que ocorre quando o organismo se esquiva do controle aversivo aumentando a aversidade para o agente punidor (Moreira e Medeiros, 2007), nesse caso o esposo não lavaria a louça como pedido para a esposa, aumentando a estimulação aversiva para ela, o que Rosenberg descreve como resistência. Portanto, quando a comunicação se dá pela emissão de mandos com topografias de julgamento e crítica da outra pessoa, é grande a probabilidade que se estabeleça uma relação de controle aversivo entre essas pessoas.

Para Rosenberg, a contingência que deve ser priorizada quando na resolução de conflito pela CNV é a de reforço positivo. O esposo reforça o comportamento da esposa de pedir a louça lavada, ao lavar a louça, bem como tem o seu comportamento de lavar a louça reforçado pelas consequências de bem-estar e alegria de uma pessoa significativa para ele. Enquanto as contingências de reforço negativo se associam ao medo e culpa, as de reforço positivo se associam à compaixão.

Rosenberg vai além e define que julgamentos morais são considerados sempre a expressão de uma necessidade não atendida do falante. Ou em termos comportamentais, a expressão de uma operação estabelecedora, ou da ausência de um estímulo reforçador. Portanto, os julgamentos não seriam simples tatos de um estímulo, mas sempre são mandos disfarçados, porque quando alguém emite um julgamento há de forma implícita a especificação de um reforçador. Quando alguém diz: “você é bagunceiro”, na verdade, gostaria de dizer que o reforço organização não está sendo disponibilizado para ela. Ou quando diz “você é frio”, na verdade está sob controle da operação estabelecedora de privação de atenção e afeto e especifica um reforçador. É crucial compreender como deslocar a variável que controla o comportamento verbal terá um efeito diferente sobre o ouvinte. Ao invés do comportamento do outro ser o antecedente da topografia de tato de um falante com função de mando disfarçado, a fala compassiva tem como antecedente as privações e eventos privados do falante.

As comparações são consideradas um tipo de julgamento moral por Rosenberg. Nesse sentido, adquirem a mesma propriedade aversiva quando usada na comunicação. Ao dizer “meu chefe é muito mais organizado que você” ou “eu prefiro quando outra pessoa limpa a casa”, também ocorrem como um mando disfarçado, já que especificam reforço de limpeza do falante. Porém, não provocam compaixão no ouvinte já que a topografia é de tato, e o efeito no ouvinte é entender como o seu comportamento que é inadequado, não desejado, não suficiente.

Com base nessas discussões, é evidente que a CNV oferece uma abordagem funcionalmente rica para melhorar a comunicação interpessoal. Além disso, dá mais ferramentas para o terapeuta comportamental que precise trabalhar uma demanda de assertividade. Nas próximas partes deste texto, serão apresentados de forma mais aprofundada os quatro componentes da CNV interpretados pela análise do comportamento. Até lá!

Referências:

Moreira, M. B. e Medeiros, C. A. (2007). Princípios Básicos de Análise do Comportamento. Porto Alegre: Artmed. 

Quinta, N. C. de C. (2018). Reflexões sobre o estabelecimento de objetivos terapêuticos na clínica analítico-comportamental. Em: de-Farias, A. K. C. R., Fonseca, F. N. & Nery, L. B. Teoria e Formulação de Casos em Análise Comportamental Clínica. Porto Alegre: Artmed. 

Rosenberg, M. B. (1999). Comunicação não violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. São Paulo: Ágora. 

Skinner, B. F. (1957). Verbal Behavior. New York: Appleton.


Como citar este artigo (APA):

Ferreira, F. F. H. (2024, 13 de setembro). Uma conversa entre a Comunicação Não Violenta (CNV) e a Análise do Comportamento. Blog do IBAC. https://ibac.com.br/uma-conversa-entre-a-comunicacao-nao-violenta-cnv-e-a-analise-do-comportamento/

Escrito por:

Flávia Hauck

Formada em psicologia pela UnB (2014). Mestre em ciências do comportamento (UnB, 2016). Experiência como docente, supervisora de estágio e psicóloga clínica.

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