Em uma descrição hipotética do cotidiano, podemos identificar relações entre comportamentos (acordar, encontrar familiares, preparar um café, tomar o café, dirigir o carro até o trabalho, escolhas de caminhos para seguir até o trabalho, dentre outros) e eventos que podem seguir a ocorrência de tais comportamentos (o sabor do café, a interação com familiares, o acesso a informações de trânsito, o encontro com situações de trânsito pouco atribuladas etc.). Grande parte desses eventos são os conhecidos reforçadores, uma vez que produzem a manutenção de padrões de ação que tanto estamos acostumados a observar e a lidar em nosso próprio cotidiano e, sem dúvida, também quando psicólogos realizam análises funcionais de casos em seu ambiente trabalho.
É importante relembrar que, na maior parte dos casos, a função reforçadora é estabelecida; sobretudo quando está sendo considerado um nível de análise que enfatiza a história de experiências de um organismo, isto é, o nível ontogenético (Skinner, 1953/2003). Assim, um mesmo estímulo/evento ambiental pode ter diferentes funções – até para um mesmo indivíduo – em diferentes ambientes. Lembremos agora daquele clássico momento em que a mesa de doces em uma festa de casamento perde a atratividade, geralmente após termos ingerido uma boa quantidade de diferentes comidas e bebidas. Ampliando ainda a discussão, sabemos também que as funções aversivas são entendidas nessa mesma lógica, na medida em que alguns estímulos adquirem funções aversivas ao longo de uma história específica de condicionamento.
Partindo dessa perspectiva, quero provocar a sua leitura com a seguinte pergunta: Se parece haver certa maleabilidade na forma como as funções de estímulos se constituem (dependente de uma história individual), como seria possível considerar como consistente e concreto o conhecimento científico produzido a partir do referencial da Análise do Comportamento? Esse aspecto não parece ter levado a Análise do Comportamento na contramão do que uma perspectiva em ciência deveria perseguir?
Para tentar comentar sobre essas questões, podemos relacionar os seguintes tópicos:
a) Delineamento de análise intrassujeito,
b) Condução de análises funcionais, e
c) Identificação de leis comportamentais.
Antes de tudo é importante ressaltar que a análise do comportamento é bastante conhecida por enfatizar os três tópicos acima como pertencentes ao grupo de características importantes para entender a forma de trabalho tanto dos pesquisadores em laboratório como dos aplicadores que têm atuado nas mais diversas áreas em que a ciência comportamental tem sido implementada (Todorov & Hanna, 2010; Tourinho & Sério, 2010).
De uma forma geral, pesquisadores na ciência utilizam um conjunto de regras que norteiam a forma como as pesquisas são conduzidas, os chamados delineamentos de pesquisa. Podemos pensar nos delineamentos de pesquisas como “templates” (modelos): cada tipo de delineamento determina a forma como organizar as atividades de um pesquisador, sobretudo em relação a maneira como os dados serão coletados e analisados (Kazdin, 1982).
Por exemplo, ao considerar que precisamos saber como clientes assíduos de uma lanchonete reagem à apresentação de diferentes formatos de um novo estímulo informativo (novas regras sanitárias), uma das formas de preparar essa investigação é organizar uma população de indivíduos em diferentes grupos. Para cada formato das informações teríamos um grupo diferente de clientes sendo expostos a elas, incluindo também um grupo com nenhuma exposição ao estímulo informativo. Essa simples descrição de procedimento em pesquisa é consistente com as regras de um tipo de delineamento chamado de delineamento de grupo. Esse delineamento é bastante comum e, portanto, não é difícil ler algum relato de resultados que tenham sido gerados a partir desse modelo de realização de pesquisas.
Contudo, um dos pontos mais importantes que iremos relembrar hoje é o seguinte: a Análise do Comportamento é amplamente conhecida por preferir, sob diferentes circunstâncias, o uso de um tipo de delineamento nomeado de intrassujeito. A principal regra desse delineamento, que contrasta com as regras do delineamento de grupo citado anteriormente, é a exposição de um mesmo indivíduo a todas as condições experimentais previstas. Seguindo o exemplo anterior, seria como considerar que um mesmo indivíduo (ou o grupo de indivíduos) iria ser exposto a todos os formatos do estímulo informativo, obtendo-se assim medidas comportamentais de um mesmo indivíduo em diferentes condições desses estímulos. Ou seja, observar como um mesmo indivíduo responde (comporta-se) em diferentes condições ambientais (essa descrição de delineamento no formato de análise intrassujeito foi inspirada em um procedimento semelhante apresentado em Bördlein, 2020).
Portanto, no delineamento intrassujeito, enfatiza-se a forma como um mesmo indivíduo interage com o meio no qual está inserido e se coleta diferentes medidas comportamentais que possam responder a uma questão de pesquisa lançada inicialmente (seguindo o exemplo: o desempenho das pessoas quando expostos a estímulos informativos). Percebam que esta é uma lógica de planejamento de investigação, mas que é projetada para dentro do trabalho aplicado de forma quase literal.
Por exemplo, na rotina de trabalho do analista do comportamento acompanhamos casos de diferentes clientes, sejam indivíduos ou organizações. Estes casos serão geralmente considerados levando em conta que ao longo de uma história, diferentes padrões de comportamentos foram e estão sendo afetados por diferentes condições de estímulos. Dessa forma, para um determinado indivíduo, o que mantém um padrão de comportamento considerado depressivo em análise pode estar relacionado a uma configuração específica de exposição a estímulos aversivos e a estímulos mantenedores que podem não ser os mesmos que controlam o comportamento de outro cliente, em outro caso que esteja acompanhando. Portanto, trata-se de uma leitura dos eventos que favorece analisar, em um viés intrassujeito, as mudanças ocorridas ao longo de uma história individual, as produções de diferentes repertórios e padrões de ações diretamente relacionados aos contextos em que este indivíduo foi exposto.
Como falamos previamente, boa parte dos estímulos têm suas funções adquiridas na história individual (exceto estímulos com funções reforçadoras/aversivas primárias; para uma proposta de classificação interessante, ver Dorigon, 2015). Como no viés de análise intrassujeito o indivíduo é considerado como sendo seu próprio parâmetro, comparações entre sujeitos devem ser evitadas. Não devem ser evitadas por serem proibidas ou ruins, mas porque geralmente apresentam qualidades gerais sobre um grupo de pessoas (e.g., “equilibradas” vs. “desequilibradas”) e não nos dá condição de entender como um indivíduo em particular interage em diferentes contextos.
Nesse sentido podemos imaginar que, se existem indivíduos que “gostam” e que “não gostam” de usar aplicativos como Waze e GoogleMaps, nomear essa diferença superficialmente parece dizer mais sobre a qualidade que comumente atribuímos aos padrões de ações dentro de grupos de pessoas e menos sobre o que realmente importa para entender as ações de uma pessoa especificamente: a história de exposição que esses indivíduos tiveram em relação a tais dispositivos.
Com isso explicita-se o valor das análises funcionais. Em diferentes exemplos, apresentamos relações entre comportamento e algum aspecto ambiental importante, ou seja, conduzimos pequenas buscas sobre o que mantém os indivíduos fazendo o que fazem. Esse é o ponto central da análise funcional e é por meio da sua realização que é possível ter acesso à história de exposição que diferentes indivíduos tiveram a diferentes condições de estímulos. Nessas avaliações da história individual, verifica-se as condições de estímulos que favoreceram o desenvolvimento das funções atuais (reforçadoras e aversivas) tão específicas quanto as que já ressaltamos ao longo deste texto. Nessa medida, não há como negar que a análise funcional é uma ferramenta especialmente cara aos analistas do comportamento por estar ela mesma aterrissada em solo cuja ênfase da investigação é intrassujeito.
Em geral, temos clareza de que estímulos reforçadores tem uma função específica sobre o comportamento (aumentar a probabilidade de ocorrência das respostas que o produzem) e que, embora o princípio comportamental seja generalizável, a função atribuída à diferentes estímulos não é, em si e por si mesma, passível de ser atribuída a outros estímulos. Dito de forma mais simples, essa definição é semelhante ao fato de não fazer sentido dizer que o estímulo café e as funções reforçadoras adquiridas em qualquer situação devam ser iguais para todos os indivíduos do universo (mesmo que tenhamos uma grande comunidade de pessoas que tomam café frequentemente). Da mesma forma, algumas pessoas não foram expostas, ou igualmente treinadas, a emitir comportamentos sob controle de dispositivos informativos como o celular e podem, por exemplo, acessar informações de trânsito no jornal televisivo.
Assim, por mais maleável que seja a visão que tenhamos sobre a diversidade de funções que um mesmo estímulo possa ter, seja para um mesmo indivíduo, ou para diferentes indivíduos, a consideração final que gostaria de deixar aqui é esta: Entre as diferentes formas de estabelecimento e de desenvolvimento das funções dos estímulos, o princípio comportamental pode ser semelhante. Além disso, a lei comportamental permanece, à despeito das diferenças individuais. A lei do comportamento que descreve os tipos de relação de dependência entre o comportamento e o evento que o segue é similar em todos os casos em que se constata interação entre comportamento e um dado evento ambiental. O que difere, como já vimos, é o conteúdo (as funções de estímulos). Essa diferença no conteúdo, portanto, não desqualifica a lei. Por essa razão, não há como duvidar da validade dos princípios e das leis comportamentais usando como ponto de partida para formular uma crítica ao valor que a análise do comportamento concede a análises que enfatizam o desenvolvimento de histórias individuais, como se essa ênfase fragilizasse o conhecimento gerado. Pelo contrário, é exatamente isso que nos interessa.
Referências
Bördlein, C. (2020). Promoting Hand Sanitizer Use in a University Cafeteria. Behavior and Social Issues, 29, 255-263. https://doi.org/10.1007/s42822-020-00026-y
Dorigon, L. T. & Andery, M. A. P. A. (2015). Estímulos reforçadores automáticos, naturais e arbitrários: uma proposta de sistematização. Acta Comportamentalia, 23 (3), 308-321. https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=274541187006
Skinner, B. F. (1953/2003). Ciência e Comportamento Humano. São Paulo: Martins Fontes.
Todorov, J. C. & Hanna, E. S. (2010). Análise do Comportamento no Brasil. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 26, 143-153. https://doi.org/10.1590/S0102-37722010000500013
Tourinho, E. Z. & Sério, T. M. A. P. (2010). Definições contemporâneas da análise do comportamento. Em E. Z. Tourinho & S. V. Luna (Orgs.), Análise do comportamento: Investigações históricas, conceituais e aplicadas (pp. 1-13). São Paulo: Roca.
Kazdin, A. E. (1982). Single-case research designs. New York, NY: Oxford University Press.