A primeira resposta que passa pela minha cabeça é ‘eu não sei’. A única afirmação que permito fazer é que me torno uma terapeuta feminista todos os dias da minha vida. Após dez anos atendendo em consultório, ouvindo diferentes histórias, estando em contato com a minha própria história, eu cheguei à conclusão mais óbvia possível para uma analista do comportamento: nossas escolhas são totalmente norteadas pelo entrelaçamento da nossa história de vida com as práticas culturais vigentes ao longo do tempo (Skinner, 1956/2003). Por isso mesmo, hoje me sinto apta a dizer que não existe uma fórmula, um protocolo ou algum estudo específico que fez com que eu me tornasse uma terapeuta feminista, é um processo contínuo.
Ao me tornar uma terapeuta, eu comecei a perceber que existiam queixas muito específicas vindas de mulheres: relacionamentos que reforçavam cada vez mais os papéis do gênero feminino, dificuldades relacionadas ao que significa ser mulher no mundo, demandas sexuais sem resolução (muitas vezes não sendo compreendidas como demandas terapêuticas), relacionamentos abusivos, maternidade, feminilidade e heterossexualidade compulsórias, entre outras demandas comuns relatadas pelas mulheres. Até hoje é comum que mulheres não identifiquem que diversas dessas demandas relacionadas ao seu sexo são problemas que podem ser trabalhados em psicoterapia. Não é incomum que mulheres busquem por psicoterapia sem saber o motivo pelo qual procuram o acompanhamento.
Além do mais, é muito frequente a queixa de que terapeutas anteriores reforçaram estereótipos de gênero, maternidade, feminilidade e heterossexualidade (a tal ‘cura gay’) compulsórias. Também é rotineiro que terapeutas anteriores tenham tentado ajudar diversas mulheres a aceitarem a vida medíocre e abusiva que seus parceiros (geralmente em relações heterossexuais) ofereciam. Em diversos atendimentos, eu fui a primeira pessoa a dizer para diferentes clientes que elas estavam em uma relação abusiva ou sofrendo pela cultura machista vigente no mundo todo.
No início da minha carreira como psicóloga clínica, há cerca de 10 anos atrás, salientar discussões sobre feminismo em consultório me causava medo, pois eu não tinha certeza se isso era ético. Eu saí da graduação em psicologia em 2009, repleta de dúvidas, de medos e de preconceitos propagados dentro da própria faculdade. Muitas profissionais da área seguiam formas estereotipadas de atendimento clínico psicológico reforçando práticas sexistas, racistas e classistas. Muitas dessas profissionais acreditavam (e tantas outras ainda acreditam) que a forma como homens e mulheres se comportam é natural de cada sexo, e não algo imposto de acordo com seu sexo (mulheres de forma feminina e homens de forma masculina).
Atualmente, eu sei que intervir em relações abusivas é ético e necessário dentro da psicologia, tal como está descrito nos Princípios Fundamentais do Código de Ética Profissional do Psicólogo (2005, p. 7, grifo meu):
I. O psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
II. O psicólogo trabalhará visando promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades e contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
III. O psicólogo atuará com responsabilidade social, analisando crítica e historicamente a realidade política, econômica, social e cultural.
VII. O psicólogo considerará as relações de poder nos contextos em que atua e os impactos dessas relações sobre as suas atividades profissionais, posicionando-se de forma crítica e em consonância com os demais princípios deste Código.
Ao começar a trabalhar com demandas frequentes do sexo feminino a partir de uma visão feminista, ao perceber melhorias na saúde mental das clientes e ter mais clareza sobre o Código de Ética da nossa profissão, eu comecei a me sentir mais à vontade em me autodenominar feminista em espaços de saúde e da psicologia como um todo. Mais tarde, como professora de graduação, tendo mais contato com a geração que está se graduando e entrando no mercado de trabalho, eu tive mais certeza ainda que esse era um caminho correto e principalmente ético.
Com o fortalecimento das redes sociais, eu descobri que existiam outras terapeutas com uma percepção feminista em psicologia clínica bem próxima a minha. Eu também entendi que eu me encontrava sozinha (naquela época!) apenas geograficamente, mas eu não estava sozinha nessa forma de compreender o sofrimento das mulheres. Ainda com a internet, eu tive acesso à principal e mais antiga pesquisadora que abriu as portas sobre esse assunto dentro da análise do comportamento: Maria R. Ruíz (falecida em 2017). Foi através dela que eu pude compreender que existiam formas feministas de produzir conhecimento e prestar serviços de qualidade para as demandas femininas com base analítico comportamental (Rosendo & Nogueira, 2020).
Bem, quem chegou até aqui provavelmente conseguiu perceber que me tornar uma terapeuta feminista foi e está sendo um processo que começou quando eu ainda era criança (e nem sabia que faria psicologia), quando eu percebia as diferenças nos direitos e privilégios ao comparar a vida de homens e mulheres. O feminismo e principalmente a busca por emancipação das mulheres é um valor que chegou antes mesmo da psicologia em minha vida.
Ser uma terapeuta que consegue basear o seu trabalho em seus próprios valores é algo importante, pois assim a gente consegue vislumbrar uma possibilidade real de mudança não só no nível individual dentro dos consultórios (mesmo assim, eu entendo que o que se trabalha em consultório pode atingir outras pessoas que convivem com a pessoa em processo terapêutico – mas isso fica para outro texto do blog!), como também no mundo. Ser uma terapeuta feminista é poder olhar para as mudanças – mesmo que pequenas – na qualidade de vida das mulheres e sentir que faz parte disso.
Meu processo em me tornar uma terapeuta feminista só vai terminar quando eu não estiver mais aqui. Enquanto eu estiver viva, eu tenho certeza que eu irei compreender cada vez mais a necessidade de ofertar serviços de psicologia que atendam às necessidades reais das mulheres. Se você deseja ser uma terapeuta feminista, posso adiantar que apenas o fato de você perceber essa necessidade te coloca no mesmo caminho que o meu. Para tanto, eu te convido através desse primeiro texto a seguir nesse caminho comigo! Vamos juntas?
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Referências:
Código de Ética Profissional do Psicólogo (2005). Conselho Federal de Psicologia.
Couto, A. G.; Dittrich, A. (2017). Feminismo e Análise do Comportamento: Caminhos para o Diálogo. Perspectivas em Análise do Comportamento, 8(2), 147-158. DOI: 10.18761/PAC.2016.047
Rosendo, A. P.; Nogueira, C. P. V. (2020). Feminismo e Análise do Comportamento: Contribuições de Maria R. Ruíz. Id on Line Rev. Mult. Psic., 14(49), 458-477. DOI: https://doi.org/10.14295/idonline.v14i49.2344
Skinner, B. F. (1956/2003). Ciência e Comportamento Humano. São Paulo: Martins Fontes.