Levanta a mão quem gosta de fazer exame de sangue!
Acho que quase ninguém gosta. A gente faz exame porque precisa, mas não é com alegria. Algumas pessoas passam mal, desmaiam, e realmente sofrem por ver uma agulha sendo injetada na veia para tirar um frasco inteiro de sangue.

Elizabeth Holmes era uma dessas pessoas que sofria muito quando precisava tirar sangue. Como estudante de biomedicina, aos 19 anos, ela teve uma ideia, que virou uma missão de vida: desenvolver um método para realizar todos os variados tipos de exame de sangue com apenas uma gota, semelhante ao processo de medir insulina com um furinho no dedo. Com isso em mente, ela fundou uma start-up, a Theranos, em 2003.
Elizabeth tinha um bom networking, além de credenciais perfeitas: era jovem, de voz grave, tinha estudado em Stanford, vinha de uma família conhecida nos Estados Unidos, e ainda mimetizava um pouco do Steve Jobs, quando só usava a mesma roupa preta e cabelos presos, para facilitar a tomada de decisão. Com tudo isso, em pouco tempo ela ganhou visibilidade e virou um ícone do Vale do Silício. Em 2014 a empresa chegou a valer US$ 9 bilhões.
A jovem cientista conseguiu sensibilizar políticos influentes, como ex-presidente Bill Clinton, e superexecutivos, como o investidor Rupert Murdoch, entre tantos, para financiarem a empresa. Sendo articulada e autoconfiante, características fundamentais da cultura do “finja até conseguir” (ou fake it till you make it), a imagem dela evocou em várias pessoas a ideia de que ela estava no caminho certo.
Só que, daí para a frente, as coisas deram errado. Ela não conseguiu tirar a promessa do papel. A empresa armou algumas desonestidades para tentar manter o que foi prometido com os investidores, inclusive com erros graves nos exames realizados. O grande potencial da jovem que queria mudar o mundo foi só uma ilusão. A Theranos fechou em 2018 e hoje Elizabeth cumpre pena de 12 anos de prisão por fraude.
A pergunta que não quer calar: como investidores sagazes se deixaram influenciar pelas ideias ingênuas de Elizabeth?
Em 1920, Edward Thorndike (que você conhece pela lei do efeito) estudou a nossa impressão inicial sobre como uma característica de uma pessoa influencia a nossa percepção sobre outras características dela. Ele observou que oficiais do exército americano faziam uma avaliação dos subordinados de maneira enviesada. Os soldados mais fortes fisicamente, ou com uma boa postura, eram avaliados como mais inteligentes ou competentes, mesmo sem uma avaliação objetiva desses traços. A esse tipo de julgamento ele chamou de Efeito Halo, baseado na ideia de que alguns traços se sobrepõem a outros como um halo angelical.
Depois disso, R. Nisbett e T. Wilson realizaram uma pesquisa muito interessante sobre o Efeito Halo. Eles colocaram um professor belga, cuja língua nativa era o francês, para dar uma aula em inglês, com algum sotaque, como era de se esperar para um estrangeiro. Para um grupo de alunos, o professor se comportou de forma amável, flexível e respeitosa. Para o outro grupo, o professor pareceu mais frio e rígido. Os participantes precisavam avaliar em uma escala tipo likert algumas características do professor, como aparência física e sotaque. Para o grupo que teve acesso ao professor frio, o sotaque foi considerado mais irritante que para o grupo que ouviu o professor mais legal – embora o sotaque não tivesse efetivamente mudado! Algo semelhante aconteceu para a aparência física e outros traços: o professor frio foi avaliado de forma mais negativa do que o professor amável, embora fosse a mesma pessoa.
Um ponto bem interessante dos estudos de Nisbett e Wilson é que os participantes responderam também sobre o quanto eles achavam que estavam sendo influenciados por uma das características. E veja só: a maioria acreditou que estava fazendo um julgamento independente.

O Efeito Halo representa essa tendência humana de avaliar as qualidades globais de uma pessoa a partir de algumas características específicas. Se uma pessoa é legal, logo há uma grande probabilidade de que eu atribua a ela outras características positivas: inteligente, simpática, bonita etc. Por outro lado, se eu não acho a pessoa legal, também provavelmente não vou achá-la nem bonita nem inteligente, nem interessante. Provavelmente ficarei enviesada por uma característica, para avaliar o todo. E o principal ponto de atenção, nem vou perceber como estou sendo influenciada.
Por exemplo:
Um belo dia, você atende a Cotovia, jovem executiva, de 31 anos, bem arrumada e maquiada, que chega ao consultório vinda diretamente do escritório em que trabalha (ou se você a atende online, ela ainda está no escritório e atrás dela, você vê objetos de decoração, plantas e livros). Ela é simpática, sorridente e bem humorada.
No horário seguinte, você recebe uma outra cliente, Sabiá, também de 31 anos. Ela abre a câmera e você a vê com uma roupa bem confortável e larga, deitada em seu quarto; a cama está desarrumada, há um bichinho de pelúcia em cima da cama e um painel de fotos dos amigos (ou se você a atender presencialmente, você consegue ver a camiseta com tema de princesa ou algum filme de fantasia).
No final do dia (e com base apenas nessas descrições super sucintas), qual das duas você acha que seria mais engajada no processo terapêutico? Qual sua primeira resposta?


Ou seja, se até investidores bilionários e oficiais graduados do exército americano se perdem no efeito halo, imagine nós, pobres terapeutas, lidando diariamente com primeiras impressões e intuições. A verdade é que nosso cérebro adora atalhos, e os vieses são justamente isso: formas rápidas (mas nem sempre precisas) de interpretar o mundo.
A questão não é se temos vieses – porque temos. O ponto-chave é: estamos atentos a eles? Quando olhamos para a jovem executiva maquiada ou para a cliente de moletom e bichinho de pelúcia, será que já estamos, sutilmente, decidindo quem será “mais engajada” na terapia? Se não fizermos um esforço consciente para ir além dessa primeira impressão, corremos o risco de atender a nossa percepção enviesada, e não a pessoa real à nossa frente.
Nossa habilidade clínica vai além de técnicas e teorias; passa pela humildade de reconhecer que também somos humanos e suscetíveis a vieses. O desafio é desenvolver a auto-observação, uma habilidade clínica essencial, par questionar nossos julgamentos rápidos e, sempre que possível, dar um passo para trás, antes de pular para a conclusão.
Então, da próxima vez que um cliente entrar no seu consultório (ou abrir a câmera), respire fundo e lembre-se: nem toda Elizabeth Holmes de gola alta muda o mundo, nem toda princesa da Disney está perdida na fantasia. E o verdadeiro engajamento terapêutico? Ah, esse só se revela com o tempo – e com um olhar que enxerga além das aparências.
Para saber mais:
Para conhecer a história da Elizabeth Holmes e da Theranos, recomendo o documentário A Inventora, disponível no streaming Max. Veja o trailer: https://www.youtube.com/embed/wtDaP18OGfw?si=D4bT96m4a8R0guyu
Lokhorst, S. L., & Reich, C. M. (2022). The alliance-outcome correlation: Is there a halo effect? Journal of Psychotherapy Integration, 32(3), 301–309. https://doi.org/10.1037/int0000285
Nisbett, R. E., & Wilson, T. D. (1977). The halo effect: Evidence for unconscious alteration of judgments. Journal of Personality and Social Psychology, 35(4), 250–256. https://doi.org/10.1037/0022-3514.35.4.250
Thorndike, E. L. (1920). A constant error in psychological ratings. Journal of Applied Psychology, 4(1), 25–29. https://doi.org/10.1037/h0071663
Como citar este artigo (APA):
Luque, P. (2025, 7 de março). O viés da terapeuta e as conclusões precipitadas. Blog do IBAC. https://ibac.com.br/o-vies-d-terapeuta-e-as-conclusoes-precipitadas/