Toda a luz que você não está vendo

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Em uma linda tarde de primavera, na Inglaterra rural de 1800, William Herschel posicionou um prisma translúcido para captar um raio de sol. No pequeno arco-íris que inundou seu laboratório, ele, com sua prancheta em mãos, passou a medir a temperatura de cada cor, do violeta, azul escuro, ciano, verde, amarelo, laranja ao vermelho. Depois do vermelho, não havia mais cor.

Mas, ao passar por esse ponto, Herschel observou que o termômetro em sua mão exibia a maior temperatura de todas. Ele estava descobrindo diante de sua olhos uma nova “cor”: a radiação infravermelha. Ela é invisível ao olho humano, mas existe e pode ser captada, se você tiver o equipamento certo.

Hoje a radiação infravermelha é usada em diversas aplicações. Você deve ter uma aí na sua casa, no controle remoto da TV, por exemplo. O ferro de passar e os aquecedores também têm radiação infravermelha. Além disso, ela é usada na medicina e na fisioterapia, para ativar a circulação e reduzir inflamações, na indústria bélica, para mísseis teleguiados e na tecnologia por imagens, para captar movimentos.

Ao explorar algo além do que queria ver, Herschel descobriu algo que ninguém conseguia ver antes.

Nenhuma grande descoberta foi feita, a não ser por

aqueles dispostos a erguer seus narizes da rotina diária

e contemplar um panorama mais amplo.

Albert Einstein

Miopia é um termo utilizado para designar a dificuldade de enxergar a certas distâncias – literal e figurativamente. Também serve para indicar como nós estreitamos o foco da nossa percepção para um conjunto restrito de estímulos.

Há a cegueira atencional, que eu tratei em um post antigo que você encontra aqui. O exemplo típico é o “se fosse uma cobra me mordia”. Quem nunca se desesperou procurando o celular por um segundo, sem perceber que estava na própria mão?

Alguns vieses cognitivos implicam também na diminuição das nossas percepções:

Efeito de ancoragem: Tendemos a ser influenciados por uma informação inicial diante das informações subsequentes. Por exemplo, se eu sei que um produto custa 100 reais, achar uma oferta por 95 pode parecer barato (ainda que seja caro para o produto). 

Efeito de confirmação: Tendemos a buscar informações que confirmam nossas regras. Por exemplo, se achamos que uma cidade é perigosa, vamos ficar muito mais atentos para as notícias que falam dessa cidade que da violência urbana nas demais.

Efeito de halo: Tendemos a formar impressões gerais sobre as pessoas com base em uma única característica. Por exemplo, se alguém é bonito, é mais provável que o consideremos inteligente e confiável, mesmo que não tenhamos nenhuma outra informação sobre ele.

Efeito de disponibilidade: Tendemos a julgar a probabilidade de algo com base no quanto nos lembramos do fato. Por exemplo, se recentemente vimos um acidente de avião, é mais provável que julguemos que os acidentes de avião são comuns, mesmo que não sejam.

Efeito de autoconveniência: Tendemos a julgar as coisas à medida que elas nos afetam pessoalmente. Por exemplo, é mais provável que julguemos que algo é justo se nos beneficiarmos disso.

Nos nossos dias atribulados e corridos, às vezes, esquecemos de fazer perguntas. Não nos atentamos para certas coisas que estavam lá, todo o tempo. Não desafiamos nossos vieses e passamos pelo automático pelo que vivemos, vemos, ouvimos ou percebemos do mundo ao nosso redor.

O trabalho de psicóloga é solitário. Na maior parte do tempo, passamos sozinhas em nossos consultórios online ou presenciais. Clientes entram e saem, e nós ficamos no mesmo local, vendo a mesma paisagem, dia após dia. É como uma estação de metrô: os trens passam, sempre no mesmo sentido; os passageiros embarcam, desembarcam, entram e saem. A estação fica cheia e esvazia. E a gente fica ali sentado no banquinho, assistindo tudo isso acontecer.

Às vezes a nossa visão fica curta – literal e figurativamente. Fazemos o mesmo caminho, vemos o mesmo sofá ou a mesma tela, temos um conjunto bem familiar de objetos que pertencem ao nosso mundo do trabalho.

Às vezes, começamos a perceber passageiros iguais, sem distingui-los uns dos outros. Passamos a usar a mesma ferramenta para todos os casos. Podemos achar que entendemos tudo sem precisar de uma formulação comportamental mínima. E às vezes, por essas razões, e outras mais, ficamos na superfície do caso, sem aprofundar em relações funcionais que fazem toda a diferença. Muitas vezes, não investigamos o que é significativo para a vida daquele passageiro em especial, que se sentou no nosso sofá para aquela viagem curta de 50 minutos. Por que ela está indo aonde vai? Será que ele está indo mesmo para onde quer ir?

E, às vezes, o que captamos de um caso clínico pode ser limitado por aquilo que vivemos, pelos nossos valores e pelos nossos Ts (lembra dos comportamentos da terapeuta, da Psicoterapia Analítico Funcional – FAP?).

A saúde dos olhos exige um horizonte.

Nós não ficaremos cansados,

desde que consigamos enxergar ao longe.

Ralph Waldo Emerson

Para além da visão molecular de um caso, como você percebe o cliente como um todo, em seu contexto, em seu panorama mais amplo? Para além das psicopatologias e classificações, quem é a pessoa que se senta a sua frente? Como você a observa? Como você a percebe? Como você se conecta?

Para mim, a essência da terapia é captar os infravermelhos, aquilo que a cliente não percebe que está lá, a cor além do espectro de cores que a cliente já conhece.

Acho que para isso é necessário adotar uma postura aberta, tirar o nariz da prancheta e olhar para toda a paisagem, da história do cliente e do mundo ao redor. Tornar-se cientista e aprendiz.

Para ampliar os horizontes, você não precisa viajar quilômetros. Ampliar não significa enxergar. Há muitas luzes que não podemos ver e há muitas possibilidades. Você pode ampliar seus horizontes sonoros, e tentar desvendar novos ruídos e músicas, antes inaudíveis para você. Você pode testar texturas e odores, que passaram despercebido, porque você sequer os tocou ou sentiu. Você pode experimentar sabores de que você se poupou em outras ocasiões.  

Por isso, explore os limites do seu mundo. Cozinhe (se não sabe, aprenda; se já sabe, descubra novos alimentos e texturas). Assista um filme em uma língua que não conhece. Aprenda uma nova habilidade: jardinagem, tricô, andar a cavalo, marcenaria. Converse com pessoas desconhecidas. Faça uma nova atividade física. Faça teatro, artesanato, fotografia. Desafie sua criatividade. Cante, toque, sapateie. Plante uma árvore ou um arbusto. Invista em experiências. Vasculhe. Investigue. Conheça.

Em 2024 desejo a você novas cores e menos vieses.

Feliz Ano Novo!

Para saber mais:

Ávila, F., & Bianchi, A. M. (Eds.). (2015). Guia de economia comportamental e experimental. EconomiaComportamental.org.

Kahneman, D. (2012). Rápido e devagar: duas formas de pensar. Objetiva.

Escrito por:

Patrícia Luque

Supervisora de Estágio no IBAC. Psicóloga clínica. Doutora em Ciências do Comportamento e Mestre em Psicologia pela UnB

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