“Posso falar o que eu bem entender?” Sobre a liberdade de expressão

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Resolvi conversar com vocês sobre um assunto polêmico e que inspira reflexões importantes sobre o conceito de liberdade. Ao longo dos últimos anos, com a modernização das redes sociais e dos aparelhos de comunicação, como smartphones e outros similares, temos observado uma abertura de possibilidades para serem relatados os mais variados tipos de eventos e opiniões, seja por meio de fotos, vídeos, ou textos. 

Talvez em decorrência dessa abertura, vez ou outra lemos notícias de episódios envolvendo figuras públicas emitindo relatos cujo conteúdo contraria valores morais e éticos diversos, ou contraria o próprio direito de buscar melhorias e implementações de políticas sociais de uma parcela da população. 

Esse debate nos coloca diante de uma problemática social em torno da noção de liberdade de expressão, e nos fornece um espaço muito valioso para pensarmos o conceito de liberdade, sobretudo, dentro do viés da filosofia behaviorista radical. Como analistas do comportamento, e como apreciadores de sua filosofia, talvez seja importante inicialmente relembrar de um importante pressuposto.

Esse pressuposto filosófico que será enfatizado gira em torno da noção de determinismo e de como isso impacta na forma de olhar o objeto de estudo da ciência do comportamento, assim como a forma mediante a qual consideramos desenvolver ou aplicar as mais diferentes abordagens tecnológicas (Guimarães & Micheleto, 2008). O determinismo, em linhas gerais, refere-se ao reconhecimento de que os eventos (e.g., os comportamentos) são produtos de uma história e, portanto, localizam-se no tempo e em um contexto específico. 

Assim, comportamentos não ocorrem “ao acaso”: existe uma história de interação com o ambiente que especifica as contingências sob as quais o nosso comportamento foi e é mantido. Então, não faz sentido, dentro dessa lógica, imaginar que comportamentos ocorrem a despeito de quaisquer aspectos ambientais: as ações, por mais mais casuais que possam parecer, são geralmente avaliadas dentro da lógica determinista previamente indicada.

É importante notar que a premissa de que o objeto de estudo de uma ciência é determinado não é um privilégio ou vantagem da ciência do comportamento (Rodrigues & Strapasson, 2019). A perspectiva determinista está na base da ciência natural de uma forma ampla. Uma vez que o objetivo da ciência consiste em prever e controlar um dado evento ou fenômeno estudado, a perspectiva determinista nos permite assumir que tais eventos não ocorrem acidentalmente e, com isso, que esses eventos são produtos de relações entre variáveis (i.e., comportamento-ambiente).

Alguns efeitos de assumir que comportamentos são determinados explicitam conflitos em relação à noção ético-moral-religiosa de que os seres humanos possuem um livre-arbítrio, ou livre decisão (ou julgamento) acerca de seus próprios atos. Meus comportamentos, dentro desse viés, não podem ser determinados. Então, partindo de uma visão determinista, como poderemos conciliar as regras sociais em torno das leis e a identificação de que os comportamentos dos indivíduos podem ser lidos a partir de uma análise funcional cuidadosa? Será que em algum momento fará sentido ainda usarmos a noção de que as pessoas são responsáveis pelos seus próprios atos, já que tudo é determinado, incluindo seus comportamentos? 

Essas e outras questões relacionadas aos conflitos entre determinismo e noções comuns em torno do conceito de liberdade são debatidas por Skinner (1953, 1971, 1974) e por Baum (1994) com uma linguagem muito amigável e acessível, ressaltando alguns dos pontos aqui destacados. De uma forma resumida, é importante notar que o fato de comportamentos serem determinados não inviabiliza os efeitos do contexto social sob o qual eu, você, leitor, e outras pessoas ao nosso redor estão inseridos.

Portanto, comportar-se em ambiente social envolve não só os efeitos da história individual de reforçamento, mas também a história e as contingências atuais que mantém os nossos comportamentos emitidos em ambiente social, incluindo também aqui a noção de ambientes virtuais de interação (e.g., as próprias redes sociais). Assim, somos responsáveis, não exatamente pelo fato de sermos hipoteticamente livres para fazermos o que quisermos, mas por que vivemos em uma forma de organização social em que foi estabelecida a existência de diferentes e específicas consequências para os mais variados tipos de comportamentos.  

O comportamento de falar, e de expressar publicamente qualquer que seja nossa opinião, é um comportamento como qualquer outro e precisa ser considerado dentro dessa lógica. Podemos avaliar as funções dos mais diferentes tipos de relatos. Considerando hipoteticamente a alta frequência de um dado tipo de relato, por serem relatos frequentes emitidos por uma mesma pessoa e com grande repercussão nos meios sociais, assume-se que há uma contingência de reforçamento que mantém a alta frequência.

Além disso, como em qualquer episódio verbal, nosso comportamento funciona como estímulo contextual para o comportamento de outros indivíduos inseridos em uma mesma comunidade verbal. Além disso, esses mesmos indivíduos podem participar dessa dinâmica e emitir comportamentos implicados na continuidade e na manutenção de outros comportamentos verbais relacionados à mesma temática e assim sucessivamente. Essa é a lógica por trás dos fios de debates que podemos acompanhar no Twitter ou mesmo em uma entrevista estruturada conduzida em um vídeo do Youtube.

A propósito, falando no Youtube, Leandro Karnal, um historiador brasileiro, em uma entrevista ao Canal Um Brasil, afirmou a seguinte frase acerca de como as tecnologias de informação nos permitem experimentar a relação entre público e privado: “Confessar é ser. Ser é expor-se” (link para a entrevista ao final do texto). Possivelmente, uma das características mais comuns do comportamento em algumas redes sociais envolve a explicitação de fatos do cotidiano, das próprias opiniões, desejos, interesses etc. É tão comum quanto a própria condição de ser no mundo, tal como indicado por Karnal. 

Em bom behaviorês, a afirmativa de Karnal nos coloca em uma posição de considerar que as contingências para os comportamentos em contextos sociais são diferentes de outrora, sobretudo em relação aos contextos nas redes sociais e de outros meios na internet. Se hoje a exposição de conteúdos privados faz parte do cotidiano, a emissão de certos relatos e exposição de alguns conteúdos são mantidos pelas consequências que eles produzem. Essas consequências, por sua vez, podem ser diversas. O jargão dos youtubers “curte e compartilha se gostou deste conteúdo” é um bom exemplo de relato que especifica com clareza a relevância de algumas consequências para o comportamento nesses contextos. 

Assim, os famosos likes, compartilhamentos e comentários de todo tipo de conteúdo apresentado ou relatado, indo desde a possibilidade de dar continuidade a um debate sobre a produção de conteúdo com alta visibilidade, nos sugerem as circunstâncias envolvidas nos arranjos de consequências que possam estar mantendo o nosso comportamento ao expressar opiniões e interesses pessoais nas redes.

O ponto de corte nesta análise, fazendo um gancho com a temática apresentada no início desse texto, envolve lembrarmos do que significa a liberdade de expressão, sobretudo nesse contexto filosófico do behaviorismo radical. Em síntese, falamos que os comportamentos são determinados e que, tendo essa perspectiva como parâmetro, a noção de liberdade não implica na noção falaciosa em torno do “poder fazer/dizer tudo”, mas em considerar que nossas ações ocorrem em um ambiente, com regras de conduta, implicações e consequências sociais definidas.   

Na mesma entrevista do Karnal sugerida previamente, esse pesquisador afirma que “o limite da liberdade de expressão é o crime e a ética”. Essa frase descreve parte da contingência envolvida nos conflitos indicados no início do texto. Para os comportamentos de relato das opiniões e visões de mundo, na medida em que estas podem violar princípios éticos específicos ou atacar a condição de existência de pessoas inseridas em determinados grupos sociais, as consequências para esses comportamentos podem caracterizar crime, como quando se incita o preconceito racial, étnico ou de procedência nacional. 

No mesmo sentido que uma avaliação funcional pode indicar que há uma audiência especializada e que possivelmente produz as consequências necessárias para a manutenção de discursos de ódio, por exemplo, é também mediante uso de avaliação funcional que poderemos entender que tais ações, potencialmente criminosas, podem e estão ligadas à produção de consequências punitivas específicas. 

A programação de consequências punitivas, em geral, fruto de muita luta e do trabalho de minorias mediante a promoção de políticas públicas, integram uma das etapas das contingências a serem programadas para mudança de comportamento de indivíduos em diferentes contextos sociais. 

É importante, unido a outras estratégias de ensino, garantir a integridade dessa contingência. Garantir integridade é, por exemplo, viabilizar que todos os casos de crime de ódio sejam adequadamente manejados, mantendo-se a consistência da relação dessa contingência. Com isso talvez possamos tornar mais clara a noção de que a liberdade de expressão é um conceito que só faz sentido pensar em um ambiente social e, portanto, sob controle de descrições verbais relevantes como são as leis e outras diretrizes de conduta social. 

Referências

Baum, W. (1994/2008). Compreender o Behaviorismo: Comportamento, Cultura e Evolução. Porto Alegre: Artmed.

Guimarães, R. P. & Micheleto, N. (2008) Algumas relações entre behaviorismo radical e determinismo: uma análise de publicações de diferentes autores. Revista Brasileira de Análise do Comportamento, 4(1).

Rodrigues, N.B. & Strapasson, B.A. (2019). Reflexões sobre a discussão do (in)determinismo na Análise do Comportamento brasileira. Acta Comportamentalia: Revista Latina de Análisis de Comportamiento, 27(4). 

Skinner, B. F. (1953/2003). Ciência e Comportamento Humano. São Paulo: Martins Fontes.

Skinner, B. F. (1974/2006). Sobre o Behaviorismo. São Paulo: Cultrix.

Skinner, B. F. (1971). Além da liberdade e dignidade. New York: Alfred A. Knopf.

Link da entrevista citada: https://www.youtube.com/watch?v=XDprxQjCYyc

Escrito por:

Ítalo Teixeira

Bacharel em Filosofia e Psicologia. Mestre em Ciências do Comportamento

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