Patriarcado, Transtornos de Personalidade e Psicoterapia Feminista

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Começo este texto afirmando que a reflexão que está sendo trazida pode ser realizada a partir de diferentes perspectivas. A perspectiva descrita aqui refere-se à minha prática clínica somada aos estudos relacionados ao sexo feminino, feminismo e suas intercorrências. Para tanto, faz-se necessário a compreensão de alguns conceitos que serão intercruzados no decorrer do artigo.

A psicoterapia feminista é uma modalidade terapêutica que pode ser utilizada por qualquer abordagem psicológica com o intuito de compreender o sofrimento feminino como inerente ao nascimento de uma mulher. Em uma psicoterapia feminista, entende-se que esse sofrimento é iniciado prematuramente no momento em que a família descobre o sexo do bebê (Fideles & Vandenberghe, 2014). Ainda dentro do útero da mulher, a socialização é iniciada através de chás de revelação e compras/ganhos de roupas e acessórios para o/a bebê de acordo com o gênero definido culturalmente a partir do sexo biológico: as mulheres são socializadas de acordo com a feminilidade e os homens são socializados de acordo com a masculinidade.

É através da socialização baseada na feminilidade que uma mulher aprende a ser mulher em uma determinada cultura. Como já dizia Beauvoir (1970) “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. O tornar-se mulher se dá a partir da socialização através da feminilidade. Seguem alguns pontos a serem considerados ao discutir a socialização das mulheres:

  • Objetificação ou coisificação da mulher desde o seu nascimento (a mulher é tratada como um produto a ser mostrado, exibido e vendido),
  • Exploração sexual do corpo feminino (prostituição e pornografia, bem como a sua glamourização),
  • Exploração reprodutiva da mulher (mulheres ricas geram e criam herdeiros e mulheres pobres geram e criam trabalhadores, barriga solidária, barriga de aluguel etc.),
  • Busca constante pela validação masculina (corpo, aparência e docilidade são os únicos aspectos que atribuem valor as mulheres),
  • Adestramento para a maternagem, reprodução e cuidado com a prole e todos os outros humanos que perpassam a vida da mulher,
  • Cultura do estupro e da pedofilia,
  • Empecilhos colocados para que as mulheres tenham dificuldade em acessar a educação e sejam inseridas desde cedo no trabalho doméstico.

A base que sustenta a estrutura da socialização feminina (e também masculina) é o Patriarcado. O patriarcado é uma forma de organização social, na qual homens dominam as mulheres e crianças dessa sociedade como um todo. O patriarcado é composto por práticas culturais machistas que são propagadas e mantidas por homens e para homens. Essa dominação patriarcal e exploração continuada de mulheres acontece através de instituições econômicas, políticas, judiciais, educacionais e midiáticas (Nicolodi & Hunziker, 2021), ou seja, através das agências de controle citadas e explicadas por Skinner (1985).

imagem retirada de: www.canva.com

Para se manter fortalecida e sempre dominante, a organização patriarcal utiliza de sistemas que propagam e mantem a submissão das mulheres perante a dominação masculina (Nicolodi & Hunziker, 2021). Esses sistemas podem ser brevemente compreendidos através da:

  • Socialização dos indivíduos através da masculinidade (crença de que homens são naturalmente violentos e que só serão aceitos entre outros homens quando se comportarem de forma agressiva e/ou violenta) e da feminilidade (crença de que mulheres são dóceis, subalternas e inferiores aos homens,
  • Heterossexualidade compulsória (crença de que a heterossexualidade é a única forma “normal” de relacionamento amoroso e/ou sexual, bem como é através desse modelo que homens dominam e exploram a capacidade sexual e reprodutiva das mulheres),
  • Maternidade compulsória (crença de que as mulheres nascem para serem mães, que a capacidade de maternar é inata, que o único destino que trará felicidade e sentimento de completude para todas as mulheres é a maternidade e que mesmo que as mulheres escapem da maternidade, elas serão incumbidas a cuidar de outros membros da família, da sociedade ou até mesmo a buscar por profissões que demandam cuidar de outras pessoas),
  • Divisão sexual do trabalho a partir do conceito de gênero e exploração do trabalho doméstico (mulheres em profissões relacionadas ao cuidado, ensino, beleza etc.; homens em profissões relacionadas a força, poder, dinheiro, comando etc., sendo que geralmente homens são mais bem remunerados do que as mulheres – em ambos os sexos os trabalhos ou profissões reforçam a lógica patriarcal dos papéis de gênero como se esses papéis fossem naturais em cada sexo),
  • Mercantilização das mulheres (indústria da pornografia, a venda individual de pacotes com fotos contendo nudez, a prostituição, a glamourização da prostituição, a prostituição ainda na infância e adolescência, os concursos de beleza, a indústria da beleza etc.),
  • Deturpação de discursos feministas emancipatórios que são utilizados pelo patriarcado através do feminismo liberal (ex.: “meu corpo, minhas regras” foi utilizado por movimentos feministas como forma de reivindicar o poder das mulheres para decidirem sobre sua própria capacidade reprodutiva e sexual).

Quando uma mulher tenta romper com essa estrutura patriarcal se negando a se comportar de forma feminina (deixando de se preocupar excessivamente com estética, aparência, beleza, padrões corporais, docilidade, submissão etc.), questionando o quanto a socialização das mulheres está voltada para o cuidado para com as outras pessoas até quando essa mulher consegue decidir pela não-maternidade (e não ser surpreendida através de uma gravidez indesejada fruto de falhas de métodos contraceptivos), se relacionando sexualmente com pessoas do mesmo sexo ou através da bissexualidade, buscando por carreiras inicialmente destinadas ao sexo masculino, exigindo uma divisão igualitária das atividades domésticas e se posicionando contra a prostituição, a pornografia e a mercantilização dos corpos femininos através da busca pela emancipação de todas as mulheres considerando os agravantes classe e raça, esta mesma mulher é taxada de histérica, narcisista ou borderline ou é ofertado qualquer outro diagnóstico psicopatológico/psiquiátrico que explique o rompimento da mulher com seu sistema opressor, o patriarcado.

A psicopatologia tem sido e pode ser uma das formas que o sistema patriarcal encontrou para controlar as ações das mulheres. Tal como Skinner (1985) já citou, a psicoterapia é considerada uma agência de controle que tem o poder de ditar regras sobre o que é normal e o que é psicopatológico. Desta forma, cabe a seguinte análise: mulheres que lutam pelos seus direitos de forma mais agressiva – muitos comportamentos considerados agressivos quando emitidos pelo sexo feminino não são considerados agressivos quando são emitidos por pessoas do sexo masculino – são frequentemente diagnosticadas como portadora do transtorno de personalidade borderline. Já o diagnóstico de transtorno de personalidade histriônica é ofertado para mulheres que atraem muita atenção para si mesmas, apresentam problemas psicossomáticos e se comportam de forma mais sexualizada. Por fim, aquelas mulheres que não exercem a maternidade tal como é esperado de uma mulher, inclusive se comportando tal como muitos homens (foco em si mesmo, individualismo, pouca demonstração de preocupação com a prole, negligência etc.), o diagnóstico cabível é o de transtorno de personalidade narcisista (ou seriam apenas mães que se tornaram mães de forma compulsória?).

O questionamento que deveria ser feito é: mulheres narcisistas, borderline e/ou histriônicas são diagnosticadas com esses transtornos por serem mulheres? Pois não é incomum, tanto na minha prática clínica quanto de outros colegas que acompanho, que homens se comportem da mesma forma e seus comportamentos sejam explicados como naturais do sexo masculino ou de acordo com a fala popular “Homem é assim mesmo”. Além do mais, não existe consenso na psiquiatria de que os transtornos de personalidade de forma geral respondem (ou não) à medicação psiquiátrica (Adami, Portello & Dias, 2020) – o que nos cabe, enquanto analistas do comportamento, questionar a origem das psicopatologias (relembre os 3 níveis de variação e seleção comportamental) e os constantes diagnósticos de transtornos de personalidade em mulheres (Abreu & Abreu, 2015).

Em uma psicoterapia feminista é necessário e imprescindível questionar a origem das psicopatologias, a relação destas com as práticas culturais vigentes e realizar uma formulação de caso que considere os três níveis de variação e seleção, focando inicialmente na cultura, uma vez que podemos ser surpreendidas/os com um sistema político, econômico e social que lucre com mulheres cada vez mais adoecidas. Mulheres adoecidas, preocupadas excessivamente com a sua aparência, que despendem tempo cuidando de outras pessoas, que exercem a maternidade e heterossexualidade compulsórias e tentam se encaixar diariamente nos estereótipos do gênero feminino, não tem espaço e tempo para olhar para as práticas culturais que afirmam que os comportamentos de contracontrole emitidos por elas (ir contra a socialização feminina) são, na verdade, formas de lidar com o sistema opressor e se manter minimamente saudável psicologicamente (Nicolodi & Hunziker, 2021).

Por isso, antes de aceitar diagnósticos ou realizar diagnósticos, analistas do comportamento e profissionais da psicologia em geral devem se atentar ao sistema e às práticas culturais vigentes. Psicopatologizar comportamentos de controcontrole é mais uma forma de ajudar a manter práticas machistas utilizando a agência de controle psicoterapia, de apoiar práticas discriminatórias e adoecedoras e por fim, de ajudar a manter o sofrimento das mulheres (Abreu & Abreu, 2015).

Referências:

Abreu, P. R.; Abreu, J. H. S. S. (2015). Terapia Comportamental Dialética: um Protocolo Comportamental ou Cognitivo? Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 18(1), 45-58. https://doi.org/10.31505/rbtcc.v18i1.831

Adami, A.; Portella, M. R.; Dias, L. F. F. (2020) Psicoterapia Para Pacientes Borderline, Engajamento e Prognóstico: a Perspectiva de Psiquiatras e Psicólogos. Perspectivas em Psicologia, 24(1), 1-24. https://doi.org/10.14393/PPv24n1a2020-56656

Associação Psiquiátrica Americana – APA (2014). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais: DSM-5. Porto Alegre: Artmed.

Beauvoir, S. (1970). O segundo sexo: Fatos e mitos. Difusão Europeia do Livro. (Trabalho original publicado em 1949).

Fideles, M. N. D.; Vandenberghe, L. (2014). Psicoterapia Analítica Funcional Feminista: Possibilidades de um Encontro. Psicologia: Teoria e Prática, 16(3), 18-29. http://dx.doi.org/10.15348/1980-6906/psicologia.v16n3p18-29.

Nicolodi, L. G.; Hunziker, M. H. L. (2021). O Patriarcado Sob a Ótica Analítico-Comportamental: Considerações Iniciais. Revista Brasileira de Análise do Comportamento, 7(2), 164-175. http://dx.doi.org/10.18542/rebac.v17i2.11012

Skinner, B. F. (1985). Ciência e Comportamento Humano. Martins Fontes. (1ª edição publicada em 1953).

QG Feminista. O que é o Patriarcado. https://qgfeminista.org/o-que-e-o-patriarcado/

Escrito por:

Ana Clara Almeida Silva

Psicóloga, Doutoranda e Docente do curso de Pós-Graduação em Análise Comportamental Clínica e no curso de Formação em FAP do IBAC.

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