“O voar não vem das asas. O beija flor, tão abreviadinho de asa, não é o que mais voa perfeito?”
– Mia Couto
A autoestima não é uma pílula que se toma quando precisa, muito menos um “dom” que alguns têm e outros não ao nascer. Na verdade, é um sentimento e, como qualquer outro, é produto da interação do indivíduo com o seu mundo e vice-versa, na qual a referência de si mesmo é construída. Mais especificamente, no caso de crianças e adolescentes, esse “mundo” pode se referir, por exemplo, aos seus cuidadores (como seus responsáveis legais, tios e avós) e escola (que pode incluir colegas e professores). Mas… se “o voar não vem das asas”, então vem de onde? Em outras palavras, se a autoestima não é algo inerente (que já se nasce com ela), que tipos de interações que crianças e adolescentes podem desenvolver com seu mundo para a promoção de uma autoestima saudável?
O sentimento de autoestima saudável da criança e do adolescente se relaciona com os comportamentos de autonomia e independência, por exemplo: fazem escolhas com a ajuda de seus pares somente quando necessário, tomam iniciativas e buscam criar condições para a resolução de problemas cotidianos de forma geral. Além disso, esse sentimento está ligado com outros sentimentos mais específicos, como os de se sentir amado incondicionalmente (isto é, sem necessitar de condições para tal) por outros e de se sentir amado por si mesmo, o que inclui a autocompaixão.
Por sua vez, com as melhores intenções, os adultos e colegas de convívio, acidentalmente, podem emitir comportamentos que culminam no desenvolvimento do sentimento de uma autoestima não saudável da criança ou do adolescente. Este sentimento está relacionado com, por exemplo, a dependência excessiva de seus pares (ex., pais ou colegas) para resolver problemas cotidianos; a apresentação de relatos autodepreciativos sobre sua aparência e seu desempenho (ex., “eu não dou conta” antes de ter ao menos tentado ou treinado), preferindo evitar a se arriscar a novas oportunidades e a permanecer na zona de segurança; a dependência emocional de terceiros (ex., precisar da aprovação constante do outro sobre seu desempenho ou sobre alguma escolha que desejar tomar); outros sentimentos relacionados em excesso, como insegurança e medo, prevendo possíveis sofrimentos ou fracassos ao tentar algo novo; apresentação da crença que só é amado, acolhido e aceito pelo outro sob determinadas condições ou altos desempenhos; entre outras possibilidades. Esses pontos citados podem ser frutos de diversas e diferentes interações cotidianas da criança e o adolescente com seu mundo. Abaixo, há algumas possibilidades dessas relações:
- Pouca ou nenhuma disponibilidade de tempo de qualidade dos cuidadores, podendo gerar na criança/adolescente, por exemplo, o pensamento que não é digno de receber atenção exclusiva de seus cuidadores em algum momento do dia;
- Carinho, amor e aceitação do adulto ou do colega aparecerem somente sob a condição de apresentarem altos desempenhos em termos de comportamentos desejáveis e/ou notas escolares. Essa interação pode produzir a sensação na criança/adolescente de que o afeto é condicional ou uma troca, e que se falharem, errarem e/ou não conseguirem atingir as altas expectativas do outro, então não serão amados e/ou não possuirão algum valor;
- Adultos resolverem diversas situações-problemas cotidianas da criança ou do adolescente em detrimento de deixar com que opinem, resolvam sozinhos ou aprendam a resolver. Por exemplo, para que não se atrasem para a escola ou até mesmo com a intenção de demonstrar afeto, os adultos podem preferir escolher e vestir a roupa por eles, oferecer a comida na boca da criança que consegue se alimentar sozinha no momento da refeição, fazer as suas próprias tarefas de casa etc.;
- Expectativas dos adultos serem muito mais altas do que a criança ou o adolescente conseguem desempenhar e a repreensão fica em cena quando não atingem os critérios estabelecidos, como a perda de privilégios/castigos intensos e irreais de serem executados de forma plena (ex., ficar sem televisão por 6 meses).
- Ocorrência das exigências acidentais em forma de elogio sobre o desempenho acadêmico ou de comportamentos no geral. Por exemplo, “Sua apresentação de jazz foi ótima, que nem sua irmã, recebendo pontuação alta”. Ainda que seja um elogio, sem querer, foi incluído duas altas exigências: igualar-se à irmã e tirar alta pontuação.
- Seus colegas e/ou adultos de convívio compararem a criança ou o adolescente com outras pessoas, estabelecendo um referencial do que é desejável, porém, desvalorizando o outro. Nessa linha, a criança e o adolescente podem se sentir inferiores, acreditarem que não agradam as pessoas e podem se moldar com o intuito de serem aceitos, ainda que custe passar por cima de seus limites e crenças.
- Adultos e/ou colegas repreenderem, censurarem, rejeitarem, criticarem, não darem afeto e negligenciarem a criança e o adolescente como um todo, podendo gerar o sentimento que são inadequados e passarem a acreditar que é tolerável e permitido agirem dessas maneiras com eles.
Diante dos pontos mencionados, há alternativas de interação que visam a promoção de uma autoestima saudável em crianças e adolescentes. O primeiro ponto se refere a seus pares fornecerem atenção, carinho, afago físico, preocupação, olhar carinhoso, sorriso, escuta ativa sem que isso necessite ser contingente a algum comportamento adequado em específico ou altos desempenhos de modo geral da criança ou do adolescente. Os pequenos precisam de pequenas porções diárias de atenção de qualidade, que podem variar de 30 segundos à 15 ou mais minutos, desde um olhar casual carinhoso até um brincar ou fazer qualquer outra atividade exclusivamente juntos (sem interferência de trabalho ou jornal da televisão, por exemplo). Algumas situações que ilustram essa questão são a criança estar brincando com a sua Barbie e seu pai lhe der um beijo na testa ou perguntar se está tudo bem com ela; após uma prova muito difícil que seu adolescente ia fazer, a mãe levá-lo para tomar um lanche por vê-lo muito cansado, sem se preocupar com o resultado dessa prova; sem ter um porquê, o pai preparar para seu filho o bolo com a calda extra de chocolate, que é seu sabor preferido. Como visto, o amor de seus cuidadores vem independente do que a criança ou o adolescente estiver fazendo, aumentando a tendência que se sintam amados incondicionalmente.
Isso não quer dizer que valorizar e expressar reconhecimento após um bom desempenho ou a comportamentos adequados e específicos contribui para uma baixa autoestima, mas sim quando esse afeto vem somente sob essas condições. Em complemento, é interessante que o reconhecimento de adultos não seja direcionado ao seu comportamento em específico, mas à CRIANÇA ou ao ADOLESCENTE como um todo. Por exemplo, em vez de “sua atitude de estudar me deixou muito feliz”, preferir “você me deixou muito feliz pelos seus estudos”. O destaque na segunda frase não é o produto, mas à PESSOA, que se comportou para tal.
Outro ponto diz respeito as exigências de desempenho demandado pelos cuidadores. É importante que elas sejam justas, correspondendo ao repertório atual da criança ou do adolescente. Os critérios de desempenho podem ir aumentando gradualmente de dificuldade, desde que sejam ensinadas aos pequenos as habilidades necessárias para tal. A ideia é a criança ou o adolescente emitir os comportamentos esperados sem dificuldades, sendo possível resolver os problemas cotidianos e se sentindo gratificados e motivados para continuar tentando e aprendendo.
Esse movimento possibilita a criança ou adolescente de realizar comparações saudáveis, que são consigo mesmos, sem supervalorizar o outro: como era seu repertório antes e depois de determinadas experiências que lhes possibilitaram diferentes aprendizagens. Investir em diários pode ser uma maneira de organizar e registrar todas essas vivências e observações sobre si! Junto a isso, em vez de tentar convencer do contrário os relatos autodepreciativos em relação ao seu desempenho abaixo do esperado para lidar com alguma circunstância, há um possível contorno que os cuidadores e seus colegas podem buscar para ajudá-los. A estratégia diz respeito à possibilidade de questioná-los sobre quais iniciativas poderiam ser tomadas para mudar o cenário considerado como problema, de modo a criar condições para que possam fazer essas mudanças quando estão sob seu controle. Para essas possibilidades de ação, pode ser que seja um requisito o desenvolvimento do repertório de habilidades sociais, que pode incluir habilidades como autoexpressão (expor seus sentimentos) e solicitação de mudança de comportamento do outro.
Resumindo o que foi exposto sobre uma relação positiva que favorece o aumento do sentimento de autoestima saudável na criança ou no adolescente, algumas perguntas em formato de checklist podem ser feitas:
- Eu tive tempo para conversar e fazer algumas atividades com a criança/adolescente, sem pressa para encerrar logo a interação?
- Eu ensinei a criança/adolescente a fazer alguma coisa?
- Eu saberia dizer que atividades a criança/adolescente gostaria de fazer em minha companhia?
- Eu saberia dizer que atividades a criança/adolescente gostaria de fazer sem mim, com os amigos dele?
- Eu fiz algo com ele para agradá-los e não para me agradar?
- Eu lhes dei alguma demonstração clara de atenção, de carinho, de amor?
- Eu valorizei alguma coisa que eles fizeram, sem especificar critérios de qualidade ou nível de desempenho?
- Eu lhes dei alguma forma de atenção, carinho, sem exigir antes nenhuma forma de comportamento adequado?
- Eu lhes dei alguma coisa de que eles gostam: uma bala, uma figurinha, uma flor, simplesmente porque me lembrei dele (não do que ele fez)?
Referências:
Guilhardi, H. J. (2002). Auto-estima, autoconfiança e responsabilidade. Comportamento humano: tudo (ou quase tudo) que você precisa saber para viver melhor, 63-98. https://itcrcampinas.com.br/pdf/helio/Autoestima_conf_respons.pdf
Medeiros, C. A. (2012). Existe espaço para o conceito de autoestima na psicoterapia analítico-comportamental? O papel dos reforçadores condicionados generalizados. https://comportese.com/2012/07/18/existe-espaco-para-o-conceito-de-autoestima-na-psicoterapia-analitico-comportamental-o-papel-dos-reforcadores-condicionados-generalizados/
Silva, A. I., & Marinho, G. I. (2003). Auto-estima e relações afetivas. Universitas: Ciências da Saúde, 1(2), 229-237. https://doi.org/10.5102/ucs.v1i2.507