O que é meu é meu: o valor da posse no efeito dotação

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Na semana passada, fui fazer um exame médico e fiquei assistindo a TV da sala de espera. Estava passando Trato Feito (Pawn Stars), um reality show que apresenta as interações de uma casa de penhores em Las Vegas. Os episódios mostram pessoas que querem se livrar de quinquilharias que elas julgam valiosas e por isso não querem simplesmente abrir mão.

As estrelas da série são os donos da casa de penhores que precisam avaliar os objetos, descobrir o que é verdadeiro e o que é falsificado, definir o que tem valor e o que não tem.

Umas das interações que vi mostrava uma senhora com um boletim da Nasa da década de 1960, recebido por seu pai quando ele trabalhava lá. O boletim havia sido assinado por diversos astronautas. Embora o caderno tivesse pouco valor prático na vida daquela senhora, ela também não queria se desfazer de algo que guardou por tantas décadas. Aí começou a negociação de valores. Eu não me lembro quanto ela queria ganhar pelo objeto, mas tenho certeza de que era mais do que os donos da loja estavam dispostos a pagar por isso.

Há diversas interações semelhantes. Pessoas querem vender relíquias da Segunda Guerra, cartazes de filmes ou itens colecionáveis raros, que estão ocupando espaço em casa. Às vezes, o cliente concorda com o valor oferecido, que é, na maioria dos casos, menos que a metade do valor pedido. Mas em muitas ocasiões, o cliente não concorda em dar o bem por tão pouco.

Na vida real, é exatamente assim. Quando eu tenho que vender uma coisa, seja um carro, seja um artesanato que eu mesma tenha feito, seja uma casa, provavelmente eu vou dar um preço mais alto do que as pessoas interessadas estarão dispostas a pagar.

Aí está o endowment effect, ou efeito de posse ou dotação, um fenômeno conhecido na economia comportamental em que os preços das coisas não são simétricos, mas dependem de quem tem sua posse, quem está comprando e quem está vendendo. Se isso é meu, ele vale mais do que aquilo que não é meu.

Um experimento clássico na área investigou o valor atribuído a uma caneca de café. Para o primeiro grupo de participantes da pesquisa, os pesquisadores deram uma caneca de café e perguntaram se gostariam de trocá-la por uma barra de chocolate. Para o segundo grupo, eles fizeram o contrário: deram o chocolate e perguntaram se queriam trocar pela caneca. Para o terceiro grupo, a escolha foi livre entre a caneca e o chocolate. Os resultados mostraram que as pessoas preferiram exatamente aquilo que ganharam. Entre as pessoas que ganharam a caneca, 90% preferiram ficar com ela. O mesmo aconteceu no grupo do chocolate. E no terceiro grupo, metade escolheu a caneca e metade o chocolate.

E não aconteceu apenas com humanos. Em um outro experimento feito com chimpanzés, eles poderiam ganhar manteiga de amendoim ou suco. Oitenta por cento deles optaram por ficar com aquilo que eles ganharam primeiro.

Ou seja, o que eu tenho vale mais do que o que eu não tenho.

Uma das possíveis explicações é a aversão à perda – abrir mão de um objeto é tão aversivo que o vendedor quer ser recompensado a mais por isso. Na aversão à perda, tratada por R. Thaler e por D. Kahneman, as perdas são mais sentidas que os ganhos e, por isso, é preciso haver algo que compense a perda. O vendedor está perdendo o objeto, enquanto o comprador estaria ganhando.

Fonte: Memegenerator

O efeito de posse ajuda a explicar porque algumas coisas são emprestadas e nunca devolvidas. Sabe aquele livro que você emprestou para um cliente? Ou aquele moletom rasgadinho nas mangas que você emprestou para sua prima, em um dia que ela foi a sua casa? Se esses itens nunca mais voltaram, talvez você esteja vivendo o efeito de posse na prática. A perda é mais sentida e o objeto é mais valioso para você do que é para a pessoa que o obteve. Talvez a pessoa que pegou emprestado não dê o mesmo valor ao item do que a pessoa que deu emprestado – e, por isso, diferentes cuidados, diferentes apegos.

Diversas aplicações podem ser tiradas daí. Por exemplo, a dificuldade de psicólogas/os darem o preço do seu atendimento. Quem oferece o serviço vai sempre achar que está cobrando pouco, mas quem paga, por melhor que o serviço seja prestado, vai achar que está pagando muito caro. Já saiba que essa é a provável reação de qualquer cliente, independentemente do valor cobrado. Assista um episódio do Trato Feito e você entenderá bem essa dinâmica.

Outro exemplo, bem interessante, de como o efeito de posse aparece em nossas vidas e na clínica, está no campo das ideias. Seres humanos apresentam a tendência a ficarem com suas próprias ideias, nutrindo-as com um carinho especial.

Talvez isso evidencie a dificuldade que alguns clientes podem ter ao se abrir para o novo, procurando ficar com aquilo que possuem, ainda que seja uma ideia que não tenha se provado tão boa assim. A Terapia de Aceitação e Compromisso chama esse fenômeno de desfusão. Quando confrontados com a possibilidade de ter que renunciar a algo, seja uma ideia, um conceito de si mesmo, uma auto regra, é preciso considerar que haverá uma valorização maior daquilo que se tem a posse, mesmo que isso não faça bem.

Para saber mais:

Avila, F., & Bianchi, A. (Orgs.) (2015). Guia de Economia Comportamental e Experimental.
São Paulo: EconomiaComportamental.org. Disponível em www.economiacomportamental.org.

Brosnan, S. F., Jones, O. D., Gardner, M., Lambeth, S. P., & Schapiro, S. J. (2012). Evolution and the expression of biases: Situational value changes the endowment effect in chimpanzees. Evolution and Human Behavior33(4), 378-386. https://doi.org/10.1016/j.evolhumbehav.2011.11.009

Kahneman, D., Knetsch, J. L., & Thaler, R. H. (1991). Anomalies: The endowment effect, loss aversion, and status quo bias. Journal of Economic Perspectives5(1), 193-206. http://www.jstor.org/stable/1942711

Maddux, W. W., Yang, H., Falk, C., Adam, H., Adair, W., Endo, Y., Carmon, Z., & Heine, S. J. (2010). For whom is parting with possessions more painful? Cultural differences in the endowment effect. Psychological Science21(12), 1910-1917. https://doi.org/10.1177/0956797610388818

Reb, J., & Connolly, T. (2007). Possession, feelings of ownership, and the endowment effect. Judgment and Decision making2(2), 107. https://journal.sjdm.org/jdm06131.pdf

Escrito por:

Patrícia Luque

Supervisora de Estágio no IBAC. Psicóloga clínica. Doutora em Ciências do Comportamento e Mestre em Psicologia pela UnB

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