Talvez vocês já tenham vivenciado situações de autoavaliação no seu processo de trabalho. Nesses momentos, pode haver a constatação de que os resultados de determinadas intervenções foram consistentes ou não com aspectos das leis comportamentais e de outros princípios sobre o comportamento que são amplamente conhecidos em nossa área. Sobretudo nos casos em que:
“O reforço parece que não reforça”, ou que
“A estratégia de dessensibilização não pareceu eficaz”, ou ainda
“A relação terapêutica não parece se desenvolver adequadamente”,
temos alguns dos exemplos de contextos em que características da intervenção e dos resultados (na forma de eventos inesperados) podem ocasionar reflexões sobre a nossa prática, especialmente sobre nossa forma de consumo e de aplicação dos conhecimentos acumulados na Ciência do Comportamento.
Para que possamos avaliar o impacto que esses eventos inesperados podem causar sobre nosso perfil de consumo de conhecimento científico e de contribuição para a nossa comunidade, talvez seja valioso relembrar como se estrutura a produção de conhecimento na ciência, envolvendo os diferentes campos e relações. De forma resumida, o conhecimento acumulado na ciência segue uma lógica que pode ser didaticamente apresentada da seguinte forma:
Esse simples esquema apresenta uma divisão esquemática que organiza a experimentação em dois eixos (básico e aplicado), além de se conectar também com a aplicação de fato (as profissões ligadas às diferentes áreas de pesquisa). É importante deixar claro que esse esquema é o mais elementar possível e que podem existir outras propostas de nomeação e de organização dos diferentes campos de produção de conhecimento indo desde a pesquisa básica até o desenvolvimento e aplicação de tecnologias (Staddon, 2018).
Em geral, a ciência básica é definida como o campo de desenvolvimento de pesquisas sobre aspectos fundamentais da natureza: biologia, física e química são exemplos clássicos de campos de pesquisa que produzem conhecimento de suporte para outras áreas de pesquisa. Essas outras áreas podem ser conhecidas por ocasionarem pesquisas com objetivo de desenvolvimento de estratégias para resolução de problemas práticos.
Assim, as chamadas ciências aplicadas partem de um conhecimento acumulado sobre fenômenos naturais e avançam no desenvolvimento de conhecimentos, avanço este potencializado pela relevância social. A exemplo do que é observado na física, em que podemos destacar o seu eixo de pesquisa básica como “física pura”, temos também o campo das engenharias que é, dentre outras coisas, uma área de pesquisa aplicada que condensa diferentes conhecimentos acumulados não apenas da física.
Por fim, as atividades profissionais, ponto final da cadeia de produção de conhecimento científico, é um campo composto pelas diferentes profissões relacionadas. Colocando como exemplo a psicologia, o ponto de saída na aplicação são as diferentes modalidades de atuação que temos conhecimento hoje, indo da psicologia clínica à do esporte, da educacional à forense etc. Todos consomem conhecimento produzido dentro de uma área de pesquisa distinta que tende a embasar e conceder as diretrizes específicas do trabalho a ser executado (Feldman, 2015). Assim, a aplicação pode ser considerada como elo final da cadeia de conhecimento especializado em psicologia.
Saindo do campo das ciências gerais e entrando no campo da nossa querida Ciência do Comportamento, provavelmente você já deve ter sido apresentado à algum esquema similar ao anterior, com uma organização didática das atividades que compreendem a Análise do Comportamento (AC). Em geral, são apresentados campos tais como: filosófico, experimental e aplicado que, pela união de seus poderes… são o capitão AC!
Brincadeiras à parte, essa é a base de uma organização didática que indica as diferentes frentes de investigação e de produção de conhecimento na AC. Percebamos que, em contraste com o esquema apresentado na Figura 1, não se trata de uma prática específica da nossa comunidade.
Existem algumas propostas de se apresentar a organização do conhecimento da Análise do Comportamento, com diferentes subcampos (Hawkins & Anderson, 2002; Moore & Cooper, 2003; Kyonka & Subramaniam, 2018). De forma geral, podemos considerar uma definição básica, tal como proposta por Moore & Copper (2003), envolvendo a descrição de 4 domínios, similar ao apresentado no esquema abaixo:
No esquema acima, a filosofia da ciência, a ciência (básica e aplicada) e a prática são destacadas, o que nos leva a observar uma relação estreita com o esquema apresentado na Figura 1. Embora sejam apresentados em domínios distintos, a seta indicando duas direções foi propositalmente colocada para facilitar o entendimento de que esses domínios se conectam. Existe uma alimentação independente de cada área com o tipo de conhecimento especializado que produz, mas exatamente por existir uma cadeia, em que a finalidade é a fundamentação de uma prática guiada, não há como não pensar que esses saberes conversam entre si (Neto, 2002).
Enfatizando especialmente o ponto mais à direita dessa cadeia, considera-se que neste domínio há a concentração das atividades de aplicadores, envolvendo o auxílio individual e/ou coletivo com estratégias para realizar intervenções comportamentais (Moore & Cooper, 2003). Com isso, podemos concluir que a aplicação guiada é o domínio em que podemos imaginar uma boa concentração de profissionais que consomem o conhecimento gerado nos demais domínios da Análise do Comportamento, não apenas no aspecto de formação das habilidades básicas, mas também por favorecer o processo de atualização profissional.
Um outro aspecto importante da aplicação, exatamente pelo contato direto com diferentes demandas em contextos de trabalho, é o de favorecer meios de se otimizar as estratégias de aplicação. Nesse sentido, principalmente quando encontramos os “casos com intervenções ou resultados inesperados”, tal como enfatizado no início desse texto, o domínio da aplicação contribui com o ciclo de produção de conhecimento da Análise do Comportamento na medida em que pode lançar questões problemas para serem investigadas pelos demais domínios, questões essas construidas a partir dessas situações de conflito prático (Copper, Heron & Heward, 2014).
Por fim, e não menos importante, é muito comum que analistas do comportamento atuem em mais de um desses domínios, o que fortalece ainda mais o reconhecimento de que a divisão entre ciência-aplicação é meramente didática, de tal forma que a conexão entre os diferentes domínios possa servir de incentivo para o diálogo e para tornar pública a nossa experiência profissional para a comunidade.
Você possivelmente já participou de algumas das contingências programadas para estabelecer diálogo e troca de experiências junto a outros membros da comunidade científica, por exemplo, com a participação em eventos nacionais e internacionais, workshops e treinamentos; ou mesmo com a publicação de banners, resumos, textos em livros e/ou em revistas científicas. Esses são apenas alguns dos exemplos e, mesmo sendo os mais comuns, sabe-se que existem diferentes desafios envolvidos nessas modalidades e que estes desafios podem ser resultantes de diferentes oportunidades/privilégios. Por outro lado, é interessante notar que em alguns contextos de trabalho e pesquisa, nossa contribuição com a comunidade científica pode consistir na participação como relator de experiências em pesquisas aplicadas.
Quando pesquisadores aplicados estão interessados em aprimorar/otimizar/adaptar o uso de diferentes tecnologias desenvolvidas, é inevitável constatar que uma importante “matéria-prima” dessas investigações consiste na análise dos comportamentos de profissionais. Nesses casos, os registros da atividade de trabalho e o relato cuidadoso servirá como dado a ser analisado.
Um exemplo prático sobre o valor desse tipo de contribuição pode ser pensado a partir do seguinte contexto:
Durante o período da pandemia de COVID-19, muitas mudanças foram impostas à prestação de serviços de muitos campos da aplicação. As modalidades de trabalho à distância começaram a ser fomentadas amplamente, o que impôs uma drástica alteração nas contingências envolvendo atividades de trabalho, o que inevitavelmente alterou também as relações estabelecidas dentro de outros contextos (familiar, lazer etc).
Essa situação de mudança no contexto e nas relações de contingência pode produzir questionamentos de aspectos da aplicação. Muitas revistas científicas de diferentes áreas de pesquisa na ciência criaram números especiais sobre COVID-19, uma programação de contingência para estabelecer troca de conhecimento sobre o que foi sendo observado, desde questões específicas da doença às condições de saúde dos profissionais de linha de frente. Além de tentar destacar os aprendizados gerais com as mudanças impostas ao trabalho e a prestação de serviços dentro desse contexto.
Um exemplo atual de pesquisa que enfatiza o aprendizado acumulado por profissionais foi publicado por Zalewski et al. (2021). Nesse estudo, os autores condensaram informações úteis sobre os desafios encontrados e sobre o que eles chamaram de “lições aprendidas” a partir da aplicação da Terapia Comportamental Dialética ou DBT (do inglês Dialectical Behavior Therapy) com uso de ferramentas virtuais para realização de acompanhamento síncrono.
Como indicado por Zalewski et al. (2021), boa parte das atuais diretrizes e dos dados de efetividade do tratamento abordam a aplicabilidade dos estágios de tratamento mediante interação, presencial, entre profissional e cliente. Nessa pesquisa, a partir do relato da experiência de 200 profissionais, os autores criaram uma tabela esquemática resumindo alguns dos temas que foram citados por eles, ressaltando alguns dos comportamentos que podem favorecer na otimização do serviço prestado com DBT por videoconferência.
Esse é apenas um exemplo atual e pertinente sobre como aplicadores participam sim do desenvolvimento da ciência. Isso porque nem consideramos o fato de que um aplicador pode ser também um pesquisador, o que estende ainda mais a possibilidade de participação. Essa pesquisa em específico (Zalewski et al., 2021) não possui um caráter prescritivo (i.e., de desenvolver um guia de orientação para o trabalho a ser executado), mas ocupa um ponto fundamental no elo de produção de conhecimento, na medida em que explicita um problema de pesquisa com gigantesca relevância social. Entretanto, não se sabe até que ponto, ou de que maneira, essas práticas relatadas pelos por esses 200 profissionais em Zalewski et al. (2021) são suficientes para estabelecer e manter a qualidade do trabalho prestado de forma virtual. Provavelmente, durante os próximos anos, muitas pesquisas surgirão dentro desse campo de avaliação, enfatizando a nossa instrumentação para o trabalho virtual e como ela favorece ou não a prestação adequada dos serviços.
Referências
Carvalho Neto, M. B. (2002). Análise do comportamento: Behaviorismo radical, análise experimental do comportamento e análise aplicada do comportamento. Interação em Psicologia, 6, 13-18. DOI: http://dx.doi.org/10.5380/psi.v6i1.3188
Cooper, J. O., Heron, T. E., & Heward, W. L. (2014). Applied behavior analysis. Upper Saddle River, NJ: Pearson.
Dittrich, A. (2011). Possibilidades da Investigação Conceitual / Filosófica na Análise do Comportamento. Interação em Psicologia, 15, p. 27-33. http://dx.doi.org/10.5380/psi.v15i0.25369
Feldman, R. S. (2015). Introdução à Psicologia. Porto Alegre: AMGH.
Hawkins, R. P., & Anderson, C. M. (2002). On the distinction between science and practice: A reply to Thyer and Adkins. The Behavior Analyst, 25, 115-119. 10.1007/BF03392050
Kyonka, E.G.E. & Subramaniam, S. (2018). Translating Behavior Analysis: a Spectrum Rather than a Road Map. Perspectives on Behavior Science, 41, 591–613. https://doi.org/10.1007/s40614-018-0145-x
Moore, J., & Cooper, J. O. (2003). Some proposed relations among the domains of behavior analysis. The Behavior Analyst, 26, 69-84. 10.1007/BF03392068
Staddon, J. E. R. (2018). Scientific method: how science works, fails to work, and pretends to work. New York: Routledge.