Ano novo, vida nova (?!)

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“Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou […]”

– Heráclito de Éfeso, Os Pensadores

A citação acima é conhecida no campo filosófico por indicar uma concepção clássica acerca do processo de mudança observado na natureza. Do simples ato de entrar em um rio, Heráclito, um antigo filósofo grego, destacou sua percepção sobre o processo de mutação que existe na natureza (Carneiro & Wrublewski, 1993). Como acabamos de começar o ano (no Brasil só começa depois do Carnaval), não por acaso, decidi iniciar o texto com essa citação. Esse último período de réveillon me fez pensar sobre algumas questões “heraclidianas” em torno do dinamismo que se observa na natureza; sobre os costumes mais comuns que também observamos em torno desse período de fim de ano e, como de costume, sobre algumas breves análises e reflexões com base na perspectiva filosófica behaviorista radical.

O fim de ano já passou, com nossas redes sociais lotadas de registros de confraternizações, de retrospectivas e de diferentes apresentações de projetos-verão. É interessante notar que, até antes de dezembro, parece até “dá para ver” uma grande onda de mudança tomando conta do cotidiano nas lojas, nas ruas, nos bares e nos lares. A ideia de criar contextos para confraternizar, celebrando o ano que passou e a “chegada de novos tempos”, parece ser muito viva ao longo desse período. Ou seja, parece que entramos em uma espécie de preparo para muitas transformações.

Nesse período, observamos também a ocorrência diversos de comportamentos que, no conhecimento popular, às vezes são vistos como um importante instrumento de mudança para o ano seguinte. Isso mesmo, estou falando das famigeradas superstições de fim de ano: usar roupas de cor específica; comer alguns tipos de sementes, amêndoas e outros alimentos; usar ou não usar algum ítem de vestimenta; “pensar positivamente”; pular sete ondas; fazer ou não fazer faxina na casa etc. São muitas as ideias de ações para preparar a chegada do novo ano, supostamente intervindo nos eventos que supostamente ocorrerão.

A simples ideia em torno do “clima de mudança” e a ocorrência de alguns desses comportamentos (as superstições) realçam uma fragilidade de boa parte das nossas análises cotidianas e triviais, mesmos essas que parecem ser passadas culturalmente, entre gerações (Benvenuti, 2010). Essa fragilidade refere-se a outro tema importante na filosofia que consiste em caracterizar duas qualidades distintas das relações entre eventos ou ideias.

Dentro Análise do Comportamento, esse assunto nos conduz a um debate sobre a diferença entre os termos contingência e contiguidade. Vale ainda ressaltar que ambos termos possuem usos técnicos e, portanto, diferentes da forma como são usados em outros contextos. Além disso, a própria qualidade “supersticioso”, quando relacionada emissão de comportamentos, também se refere à uma definição técnica específica, portanto, distanciando-se do uso comum (ver Benvenuti, 2010).

De forma bem resumida é possível indicar que, por contingência, falamos da observação de relações de dependência entre dois eventos, ou seja, sempre que B ocorreu, A o antecedeu e o produziu (Souza, 2010). Ou seja, é possível derivar uma relação se -> então entre eventos, um formato de relação entre eventos que já conhecemos acerca da sua preciosidade para o desenvolvimento de conhecimento na ciência. Por exemplo:

  • A temperatura tende a diminuir (B), sempre que ligo o ar-condicionado (A);
  • O comportamento de estudar regularmente ao longo de dois meses (A) aumentam as chances de produzir um resultado satisfatório em uma avaliação parcial ao final do bimestre (B).

O conceito de contiguidade implica em caracterizar apenas a distância temporal entre eventos. Aqui não há uma relação de dependência entre A e B. Poderia haver, inclusive, uma proximidade tão estreita entre os eventos quanto fosse possível supor que haveria alguma relação de dependência entre eles, mas que não passaria de uma mera conclusão precipitada (Catania, 1999). Dessa forma, fala-se que eventos são contíguos quando não há dependência entre eles; podem estar próximos, ocorrer lado a lado no tempo, porém, sem derivar uma relação se -> então.  Por exemplo, o som da minha TV ligada agora na sala (B), embora ocorra no exato momento no tempo em que passa o carro da pamonha lá fora (A), não significa que “o som da TV” produz o evento “carro da pamonha” ou vice-versa.

Uma aplicação direta desses conceitos resulta na organização de eventos comportamentais nos termos da unidade mais básica: a relação antecedente: resposta-consequência (Souza, 2010). Essa unidade básica é comumente chamada de tríplice contingência, não por acaso. De forma resumida, desde que a análise experimental do comportamento surgiu, tem-se observado que os termos dessa unidade de análise são eventos que possuem alguma relação de dependência entre si. Vale lembrar mais uma vez que a noção de que eventos possuem relações de dependência entre si é muito cara a ciência de uma forma ampla. Haja vista que identificar relações de causa-efeito, identificar meios para prever e controlar fenômenos é, em suma, encontrar regularidades (por exemplo, sempre que A ocorreu de certa maneira, B foi produzido em tais condições).

Agora pode ficar um pouco mais claro de entender os aspectos filosóficos que caracterizam a nossa atividade profissional enquanto processo de identificação de relações de dependência entre comportamento-ambiente. Além disso, talvez fique mais claro a razão de ter qualificado como frágil um certo grupo de reflexões/análises, mesmo aqueles exemplos que são tão populares no meio social em épocas de fim de ano. Se não, vejamos: considerando esse contexto de análise, qual a relação de dependência entre usar blusa amarela no dia 31 de dezembro e ganhar muito dinheiro ao longo do ano? Ou qual a relação entre comer algumas nozes no jantar do dia 31 de dezembro e ter um ano novo cheio de fartura? Qual a relação entre a presença na confraternização e as mudanças nas relações interpessoais entre colegas de trabalho, da turma, da família etc.?

Tentar responder essas questões nos leva a uma rápida identificação de que, mesmo se, a longo prazo, alguém que use amarelo dia 31 de dezembro ganhe uma herança inesperada logo em seguida, concordaríamos que não passaria de uma grande (e feliz, diga-se de passagem) coincidência.

Com isso, apresento-lhes o ponto de reflexão para carregarmos para nosso cotidiano pessoal e profissional, “rufem os tambores!”: a mera contiguidade (proximidade) entre eventos pode nos levar a conclusões superficiais referentes a determinação desses mesmos eventos.

Dessa forma, por mais positivos e cheios de esperanças que sejam nossos votos de fim de ano para mudanças significativas em nossas vidas, em termos práticos, mudanças substanciais (quando não resultante de eventos acidentais) são decorrentes de um bom planejamento envolvendo manejo de aspectos ambientais.

Usar itens, pular ondas, comer algum alimento específico: todos esses eventos não parecem produzir a mudança idealizada para o novo ano. Por mais que, acidentalmente, alguém que tenha comido alguma amêndoa perceba que o ano de 2021 tenha sido de mesa farta e redução de dificuldades financeiras, um(a) bom/boa analista do comportamento sempre buscará dados sobre as mudanças de estilo de vida que ocorreram ao longo ano e quais os eventos (consequências) que podem ter contribuído para a manutenção dessa mudança (Skinner, 1990/2006).

Retomando a epígrafe desse texto: Embora, em termos lógicos, a declaração de Heráclito seja fundamental para entendermos que a simples passagem do tempo implica em mudança ambiental e seus efeitos sobre os organismos resultar, em geral, em uma possível mudança de comportamento; essa mesma afirmação talvez precise ser lida com cautela, caso nosso interesse seja também o de estar pautado em uma perspectiva behaviorista radical.

Não somos como um toco de árvore fincado no solo dentro da água do rio que passa e se altera progressivamente com a passagem do tempo. Além disso, levando ao extremo essa afirmativa poderíamos, por exemplo, concluir que tudo que ocorre em um “novo ano” produziria muitas mudanças comportamentais inevitáveis, a despeito do que façamos diretamente.  

Algumas mudanças ocorrem a despeito do que façamos, claro, mas a direção delas pode ser diversa, tão diversa quanto a quantidade de números que possamos pensar. Mudanças decorrentes de planejamentos diretos (em situações de ensino/aprendizagem; em ambientes de trabalho; em situações de atendimento em médico, psicológico; em contextos de intervenção social-cultural) em geral são situações que possuem alguma relação de contingência para estabelecer e manter um grupo de comportamentos relevantes para uma dada mudança ou padrão comportamental.

Por fim, longe de querer desvalorizar a disposição individual para crer (pensando a crença como uma adesão a validade de uma noção qualquer, com ou sem evidências que a sustentem), o objetivo aqui é tentar mostrar que, quando o assunto é encontrar apoio científico não apenas para explicar, mas para produzir algumas das características em torno do que gostaríamos de observar no mundo; a ciência do comportamento possivelmente poderá nos informar e demonstrar, com boas evidências, sobre o efeito do processo de planejamento de contingências.

Fora desse contexto, o novo ano pode ser nada mais que uma “vida velha”, ou talvez uma “vida nova” com surpresas nunca desejadas ou esperadas. Sobretudo quando se trata de surpresas ruins, facilmente cria-se o contexto que pode produzir frustrações decorrentes do baixo controle sobre eventos adversos (situações difíceis).

Indicações de leitura:

Benvenuti, M. F. L. (2010). Contato com a realidade, crenças, ilusões e superstições: possibilidades do analista do comportamento. Revista Perspectivas, 1(1), 34-43. https://doi.org/10.18761/perspectivas.v1i1.21

Carneiro, L. E. & Wrublewski, S. (1993). Os pensadores originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Petrópolis: Vozes.

Catania, A. C. (1999). Aprendizagem: Comportamento, linguagem e cognição. Porto Alegre: Artes Médicas.

Cruz, R. N., & Cillo, E. N. P. (2008). Do Mecanicismo ao Selecionismo: Uma Breve Contextualização da Transição do Behaviorismo Radical. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, 24(3), 375-385. https://www.scielo.br/j/ptp/a/PMYvvLbTjqC5gnLSCkwLNyq/?format=pdf&lang=pt

Heráclito. Doxografia e fragmentos. Em: Souza, J.C. (1978). Os pré-socráticos: fragmentos, doxografia e comentários (Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural.

Skinner (1990/2006). Sobre o Behaviorismo. São Paulo: Cultrix.

Souza, D. G. (2000). O conceito de contingência: um enfoque histórico. Temas em Psicologia da SBP, 8(2), 125-136. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-389X2000000200002&lng=pt&tlng=pt

Ferrer, N. M., & Souza, R. D. B. (2013). Comportamento Supersticioso: aspectos conceituais e experimentais. Associação Brasileira de Psicologia e Medicina Comportamental: Comportamento em foco, 2, 69-76. https://abpmc.org.br/wp-content/uploads/2021/08/1405122562c78cfe5f87c.pdf

Escrito por:

Ítalo Teixeira

Bacharel em Filosofia e Psicologia. Mestre em Ciências do Comportamento

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