Havia terminado os atendimentos pela manhã, e caminhava distraída pelas ruas do Nordeste brasileiro, sob um sol de 34°C. Este é um daqueles dias ensolarados (por demais) que parecem-nos deixar desmotivados até mesmo para levantar os olhos na direção do trajeto e virar a próxima esquina. O sinal abriu para o pedestre; ao olhar para o semáforo e não restar dúvidas que podia cruzar a rua, olhei de soslaio para o outdoor no início da esquina em que me dirigia. Uma frase me chamou a atenção, e enquanto estava distraída, senti uma mão no meu ombro:
– “Moça, desse jeito vai ser atropelada!”.
Enquanto saía do devaneio que irei compartilhar com vocês, a senhora me deu um sorriso e saiu apressada entre as poucas pessoas que cruzaram a rua naquele final de manhã. Se ao menos ela tivesse escutado o meu muito obrigada!
O que dizia o outdoor?
“Busque a felicidade! Ou melhor, a use com o Dr. Miguel [nome fictício], o melhor cirurgião plástico da região. Faça a sua avaliação hoje mesmo! Descubra o poder que há em você!”
E assim é a felicidade sob a lente cultural que experenciamos: emagreça, aumente os lábios, afine o nariz, aumente os seios, reduza a cintura, alise o cabelo, malhe mais etc.
Certamente todos nós já ouvimos estas alusões em algum momento, seja no consultório, na nossa família, ou ao ecoarmos essas frases para nós mesmos. A cultura exalta a ilusão do que é a felicidade. A tal felicidade que apenas sincroniza nossas ilusões pessoais de sentido com as ilusões coletivas predominantes, as quais nem sempre produzem bem-estar. Em que um estado momentâneo do existir, condicionado a um reforçador, tornou-se um espaço para o adoecedor.
Naquela tarde, voltei aos meus pensamentos: Quais variáveis levaram aquele médico ou, o responsável pelo cartaz, representar daquela maneira as concepções que cada mulher teria de si? Seria possível tratar-se de alguém com refinamento da previsibilidade em relação ao comportamento do gênero feminino? Ou apenas uma aposta de marketing que fracassará? Certamente, não chegarei a conclusões acuradas para os caros leitores, mas a hipóteses apoiadas com alguns dados para esta escrita que foi evocada pelo outdoor.
Segundo a pesquisa da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS), em 2020, o Brasil realizou mais de 1,3 milhão de cirurgias, perdendo apenas para os EUA. Não estarei aqui para criar julgamentos acerca das cirurgias estéticas. Mas, para clarificar algumas contingências coercitivas ao nosso entorno que passam despercebidas. Contudo, apenas em consciência (no sentido de conhecer as variáveis controladoras dos nossos comportamentos), porque ainda escolhemos em função de ocasiões e consequências. Sejam nas mais sutis, até naquelas que nos põem em riscos de vida. Afinal, 1,3 milhão é um número considerável para estudarmos as condições de algumas escolhas.
Em meio a um café e um livro sobre a mesa, eu me questionava: Essa é uma narrativa que pode nos deixar cair em armadilhas? A felicidade realmente depende do que é imposto para almejarmos? De um silicone? De um corpo mais definido? Um cabelo em determinada cor? O que Skinner tem a dizer sobre isso?
Bem, para Skinner, a busca desmedida do efeito prazeroso do reforçamento, ou melhor, dessa cultura da felicidade, é uma fonte que tornou o comportamento excessivamente controlado por reforçadores artificiais ou arbitrários. Dinheiro, elogio, atenção e bajulação são alguns bons exemplos que exercem controle na nossa sociedade. De forma menos teórica e conceitual, uma busca de desejos evanescentes e insaciáveis para tentar concretizar uma vida feliz. O que torna a busca por esses modelos um sério risco a nossa tranquilidade, visto que pode nos tornar prisioneiros com grades invisíveis dessa busca desenfreada.
Permeado nos termos analítico-comportamentais, a busca por esses reforçadores sociais generalizados fazem com que nós participemos dos mais diversos tipos de controle social, inclusive algumas formas de controle abusivo ou opressor. Desta maneira, desconsiderando-se as consequências aversivas que poderão nublar uma vida que valha a pena ser experenciada. A cultura patológica da ostentação, ou mesmo do corpo feminino, como retratado pelo outdoor, revistas de moda, redes sociais etc. podem servir como bons exemplos de como seguimos o segredo da “felicidade” no ocidente.
Mas, Luana, tantos reforçadores e punidores são criados na sociedade. Por que estes efeitos poderiam/deveriam nos preocupar? Como questionaria Sidman, à medida que nosso ambiente ganha novos reforçadores positivos, nossas vidas não tornam-se potencialmente mais gratificantes? Para respondê-los, pensem nesta indagação: essas escolhas são efetivamente controladas por reforço positivo, ou são feridas da submissão? Em que emitimos desde um alisamento do cabelo até a cirurgias no nosso corpo para nos esquivarmos de todo o processo opressor, coercitivo e adoecedor que está ao nosso entorno.
Como assente Sidman, a nossa sensibilidade ao controle ambiental torna possível adaptarmo-nos a contingências de reforçamento e punição variadas; por exemplo, como as classes de respostas (rotuladas de machismos) ainda tornam-se ocasiões do comportar-se feminino. Estes subprodutos são o que nos levam ao consultório, às mutilações, a estados deprimidos etc. Entretanto, sem a consciência mediadora deste processo mais efetivo entre as práticas coercitivas e o comportamento de nós, mulheres, as nossas ações certamente estarão sensíveis aquele outdoor.
Qual a consequência dessa variável cultural coercitiva que permeia as nossas escolhas?
Tornamo-nos meras “expectadoras” do comportamento operante de outros. Tornamo-nos meras coadjuvantes da nossa própria vida. Em que falha o autoconhecimento do que efetivamente poderíamos ser: uma vida de ações que não sejam controladas por práticas machistas/coercitivas, mas por contingências de reforçamentos positivos e, consequentemente, que produzam bem-estar em nossas vidas.
Enquanto terapeutas, que possamos utilizar a tecnologia comportamental para evocar/eliciar respostas e sentimentos frutos de novas consequências. Para assim, as fontes das preocupações de clientes mulheres, possam abrir espaço para escolhas conscientes e satisfatórias.
Leituras sugeridas:
Catania, A. C. (1999). Aprendizagem: comportamento, linguagem e cognição. Trad. D. D. de Souza et al. Porto Alegre: Artes Médicas Sul.
Fontanive, S. (2023). Número de cirurgias plásticas cresce a cada ano e suscita debates sobre a autoimagem na sociedade de consumo. Jornal da Universidade: UFRGS. Disponível em: https://www.ufrgs.br/jornal/numero-de-cirurgias-plasticas-cresce-a-cada-ano-e-suscita-debates-sobre-a-autoimagem-na-sociedade-de-consumo/
Kubo, O., & Botomé, S. (2001). Ensino-aprendizagem: uma interação entre dois processos
comportamentais. Interação em Psicologia, 5(1), 123-132. http://dx.doi.org/10.5380/psi.v5i1.3321
Skinner, B. F. (2014). Contingencies of reinforcement: A theoretical analysis (Vol. 3). BF Skinner Foundation.
Autora:
Luana dos S. Nascimento
Psicóloga, aluna da Pós-graduação em Análise Comportamental Clínica do IBAC.