Você sabe o que você não sabe?

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Os ignorantes são mais felizes.

– Clarice Lispector

Considere o texto abaixo:


Sob a ação de uma força de tração ou de compressão, todo objeto deforma-se.

Se, ao cessar a atuação dessa força, o corpo recupera sua forma primitiva, diz-se que

a deformação é elástica. Em geral, existe um limite para o valor da força a partir do

qual acontece uma deformação permanente no corpo. Dentro do limite elástico,

há uma relação linear entre a força aplicada e a deformação. Considere-se o caso de

uma haste presa por uma de suas extremidades. Se uma força F vertical, for aplicada

na extremidade livre, esta provocará uma flexão y na haste. Essa flexão depende do

valor da força aplicada, bem como do material e da forma geométrica da haste.

Dentro do limite elástico, tem-se que F = kfy, em que F é o módulo de F e

kf é a constante de flexão.

Você entendeu alguma coisa? Supondo que você seja da Psicologia, estudante ou profissional, e não da engenharia ou física, imagino que você tenha minimamente entendido o texto. Afinal, você tem conhecimento razoável sobre a vida e sobre a Língua Portuguesa para entender o que é uma haste, uma força e a deformação em um material.

Porém, talvez você não consiga avaliar se esse texto está correto ou se há alguma inadequação nele. Ele parece verdadeiro o suficiente para você supor que ele é. Provavelmente, você também não conseguiria fazer perguntas a partir dele, se eu perguntasse a você se ficou alguma dúvida. Ele é claro o bastante, diante do conhecimento que você tem.

A ideia de conhecer algo superficialmente o suficiente para entender mas sem profundidade necessária para avaliar e criticar o argumento é a principal característica do efeito Dunning-Kruger.

Para qualquer habilidade humana, as pessoas diferem em seu grau de competência e expertise. Todos nós somos muito bons em certas coisas, mas ignoramos totalmente outras tantas. Eu entendo um pouco de análise do comportamento, mas desconheço por completo a política externa do Japão, a dificuldade de dessalinizar oceanos e como o beija-flor bate a asa tão rápido (entre outros milhões de exemplos que eu poderia dar aqui).

E você? O que você desconhece?

Em uma série de 4 estudos, David Dunning e Justin Kruger demonstraram que pessoas com grandes déficits em conhecimento não foram capazes de reconhecer suas inabilidades.

Infelizmente, nem todo mundo é como Glória Pires, na transmissão do Oscar em 2016:

Apesar de cometerem erros, as pessoas consideram estar indo bem. Nos testes, as pessoas que alcançaram os scores mais baixos estimaram que estariam entre os melhores resultados. Você já deve ter saído de uma prova com uma boa perspectiva de resultado, mas se surpreendeu com uma nota bem baixa depois.

O efeito Dunning-Kruger revela que quanto mais ignorante em um assunto uma pessoa é, menos ela se acha incompetente para avaliar o que viu. Parece que ela entendeu bem. Um belo paradoxo que surge na medicina, na política, nos negócios, e em praticamente todas as áreas do conhecimento humano.

David Dunning afirma que há duas verdades sobre a ignorância. A primeira é que a ignorância é prevalente no mundo atual. A segunda é que a ignorância é normalmente invisível para quem sofre dela.

Por exemplo, todo mundo que dirige se acha ótima/o motorista, mas o que explicaria então tantos acidentes de trânsito? É virtualmente impossível que todo mundo esteja acima da média.

Se você já viu uma competição de talentos, você deve ter observado que pessoas bem pouco talentosas se apresentem acreditando que podem ganhar. Ou então, já deve ter ouvido alguém contar de um primo de uma vizinha da sua mãe que fez uma prova do Enem ou de um concurso bem difícil, estudou dois dias e realmente acredita que pode ter chances de passar.

Há sempre aquela pessoa que ouviu um podcast e saiu por aí fazendo diagnósticos de saúde mental, achando que sabe mais que psiquiatra e psicóloga. Prepare-se: eventualmente, você pode atender alguém desse tipo, que diz “Eu acho que, você como psicóloga, deveria…”

Talvez essas pessoas sejam tão incompetentes no tema, que elas sequer percebam o pouco conhecimento ou habilidade que têm.

Infelizmente, parece que muitas pessoas se aproveitam da inabilidade, da ignorância e da incompetência natural de todos nós para oferecer soluções milagrosas e rápidas. No instagram, há diversos posts como “participe do meu workshop de 2 horas e aprenda a ganhar 50 mil por mês”. Eu não duvido da capacidade de alguém ganhar R$ 50 mil por mês, mas talvez duas horas seja muito pouco para aprender como.

Por outro lado, quanto mais você conhece sobre um assunto, mais você percebe que ainda há muito a aprender. Cada artigo que você lê abre dezenas de outras referências. Cada coisa que você entende leva você a novas e várias outras perguntas. Cada atendimento que você tem com um(a) cliente permite muito mais perguntas sobre sua vida.

Por isso, tenha consciência de suas inabilidades. A curva para o conhecimento exige dedicação e tempo. Empenhe-se em conhecer e estudar mais seus casos clínicos, feche suas formulações com especial atenção. É fácil cair na tentação de achar que sabe muito, sabendo pouco.

O que sabemos é uma gota, o que ignoramos é um oceano.

– Isaac Newton

Para saber mais:

Dunning, D. (2011). The Dunning–Kruger effect: On being ignorant of one’s own ignorance. In Advances in experimental social psychology (Vol. 44, pp. 247-296). Academic Press. https://doi.org/10.1016/B978-0-12-385522-0.00005-6

Kruger, J., & Dunning, D. (1999). Unskilled and unaware of it: How difficulties in recognizing one’s own incompetence lead to inflated self-assessments. Journal of Personality and Social Psychology, 77(6), 1121–1134. https://doi.org/10.1037/0022-3514.77.6.1121

Mazor, M., & Fleming, S. M. (2021). The Dunning-Kruger effect revisited. Nature Human Behaviour5(6), 677-678. https://doi.org/10.1038/s41562-021-01101-z

Schlösser, T., Dunning, D., Johnson, K. L., & Kruger, J. (2013). How unaware are the unskilled? Empirical tests of the “signal extraction” counterexplanation for the Dunning–Kruger effect in self-evaluation of performance. Journal of Economic Psychology39, 85-100. https://doi.org/10.1016/j.joep.2013.07.004

Fonte do texto do primeiro parágrafo: https://www.fisica.ufmg.br/ciclo-basico/wp-content/uploads/sites/4/2020/05/Deformacao_Elastica_de_uma_Haste.pdf

Escrito por:

Patrícia Luque

Supervisora de Estágio no IBAC. Psicóloga clínica. Doutora em Ciências do Comportamento e Mestre em Psicologia pela UnB

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