Luiz chega no consultório indignado. Ele reclama que sua esposa Flávia só pensa em trabalho, não é atenciosa, não ajuda nas atividades domésticas. Entre outras coisas, segundo Luiz, Flávia não vê as bagunças sobre a mesa da sala, nem percebe que sobraram algumas louças para serem lavadas na pia. Mas na última semana, ele me diz:
– Você acredita que os gatos estavam sem comida e ela não encheu o potinho deles? Quando eu cheguei em casa à noite, ela falou que não viu que eles não tinham comida!! Como assim? Eu sei que ela gosta dos gatos, mas ela passou pelo potinho 200 vezes durante o dia. Como ela não viu?
Eu acredito. Acredito que a Flávia não tenha mesmo visto, ainda que tivesse olhado inúmeras vezes para o potinho do gato. Há coisas que simplesmente não vemos. Flávia não seria a primeira a sofrer de cegueira desatencional, um fenômeno estudado por Christopher Chabris e Daniel Simons, em 1999.
Nós tendemos a achar que conseguiremos notar todas as coisas apenas ao olhar para elas e acreditamos que veremos quando algo inesperado aparecer na nossa frente. Achamos que somos capazes de digitar um texto e dirigir ao mesmo tempo. Achamos que claro que vamos notar se houver alguma mudança a nossa frente. Mas os estudos de Chabris e Simons mostram o contrário.
Quer testar? Veja o vídeo a seguir apresentado em um dos experimentos realizados. Sua tarefa é contar quantas vezes a equipe de camiseta branca passa a bola entre si.
Agora responda:
- Você viu algum evento inesperado no vídeo?
- Você viu um gorila?
Se não viu, assista novamente o vídeo. E veja se ele aparece para você.
Cerca de 54% das pessoas relatam terem visto o gorila na primeira vez. E embora não sejam a maioria, chama a atenção o fato de que 46% das pessoas estavam olhando para a tela e perderam algo completamente inusitado acontecendo a sua frente. Quando veem o vídeo pela segunda vez, 100% das pessoas enxergam o gorila.
Por que elas não viram o gorila? Porque elas estavam engajadas em um outro comportamento concorrente, que era contar os passes das pessoas de camiseta branca.
O experimento foi replicado com diversas variações, com pessoas com idades diferentes e em muitos contextos. Em todos, há um percentual significativo de pessoas que não enxergam coisas simples, porém inesperadas, acontecendo a sua frente, como um elemento novo na cena ou a mudança de uma cor do cenário.
Esse experimento traz alguns pontos interessantes para considerarmos na clínica. O primeiro é que talvez o/a nosso/a cliente tenha grande dificuldade de narrar os fatos relevantes, e vai deixar alguns gorilas de fora. Ou seja, ele/a realmente não consegue ver tudo o que acontece, talvez porque esteja engajado/a em outros comportamentos concorrentes, inclusive comportamentos encobertos, como pensar e reclamar privadamente de uma situação. Talvez quando o/a cliente responda “como foi sua semana?” com um “Normal!” ou um “Tudo bem”, ele/a realmente não tenha visto um gorila gigante passar pela vida dele.
É uma questão de saber o que olhar e saber para onde olhar. A cegueira desatencional descreve que não somos desatentos, ou temos déficit de atenção, mas que são selecionados alguns estímulos que receberão a nossa atenção em uma dada atividade. Para todos os outros estímulos do ambiente, seremos incapazes de os notar. Por estarmos engajados em um comportamento, apenas um grupo de estímulos discriminativos que antecede nosso comportamento entra em vigor. Quando a tarefa do vídeo é contar passes da bola das pessoas de camiseta branca, temos uma operação motivadora que vai evocar uma classe de respostas (observar as pessoas de camiseta branca, observar a bola, identificar quando a bola troca de mãos, contar privadamente os passes, olhar apenas para o vídeo, ficar em silêncio), e apenas alguns estímulos do ambiente se tornarão SDs para o comportamento.
Por isso, não importa quantas vezes Flávia tenha passado pelo potinho do gato. Se ela estava indo buscar ou levar uma coisa a algum lugar, se passou falando ao telefone ou se estava pensando nas atividades do trabalho, o potinho do gato realmente não existiu no mundo dela. E ela não o viu, assim como 46% das pessoas não enxergam o gorila da primeira vez.
(não vamos entrar no mérito se o gato tinha ou não comida…
Quem tem gato, entenderá… hehehe).
Será que somos capazes de olhas todos os aspectos de uma alternativa para decidir sobre ela? O experimento do gorila invisível também pode mostrar que, ao reduzirmos o espectro da nossa atenção a alguns estímulos e excluirmos outros do nosso mundo, também ao decidir entre algumas opções estamos selecionando estímulos que façam sentido, mas não estamos vendo todo o conjunto. Por exemplo:
Suponha que Paulo chega à terapia, com a demanda de que não aguenta mais seu marido Ricardo, que tudo o que Ricardo faz o enfurece e agora ele quer a separação, depois de 10 anos de casados. Quando Paulo reclama de Ricardo, será que Paulo vê tudo o que Ricardo faz? Será que vê os momentos agradáveis, os movimentos de Ricardo de afeto, as situações individuais talvez complicadas pelas quais Ricardo esteja passando? Ou será que Paulo vê apenas aquilo que se propôs a ver (como nos passes da equipe de camiseta branca), o inadequado, o desagradável, apenas um conjunto de estímulos que fazem sentido dentro da operação motivadora que está em vigor? Essa operação motivadora pode ser talvez privação de carinho, uma sensibilidade maior a aversivos ou um novo esquema concorrente com reforçadores mais ricos sendo sinalizado de forma alternativa (i.e., uma outra pessoa interessante na área).
Muito do que a terapia se propõe a fazer é ampliar a sensibilidade dos/as nossos/as clientes para captar o mundo e observar melhor os estímulos ao seu redor. Lembre-se que depois de saber que há um gorila no vídeo, é impossível “desvê-lo”. Estando cientes de que alguns estímulos vão escapar da nossa atenção, podemos desafiar nossa percepção de mundo e nos perguntar o que estamos deixando de ver nessa situação. Com essa nova operação motivadora vigorando, seremos capazes de ver muitos gorilas antes invisíveis na nossa vida.
Para saber mais:
Veja o Ted Talk de Daniel Simons:
Chabris, C., & Simons, D. (2011). O gorila invisível: e outros equívocos da intuição. Rio de Janeiro: Rocco.
Jensen, M. S., Yao, R., Street, W. N., & Simons, D. J. (2011). Change blindness and inattentional blindness. Wiley Interdisciplinary Reviews: Cognitive Science, 2(5), 529-546. https://doi.org/10.1002/wcs.130
Simons, D. J. (2000). Attentional capture and inattentional blindness. Trends in cognitive sciences, 4(4), 147-155. https://doi.org/10.1016/S1364-6613(00)01455-8