Uma Intersecção entre Classe, Raça e Sexo

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Eu gostaria de iniciar esse texto questionando:

Quantas vezes você deferiu a expressão expressão white people problems (WPP) para homens e quantas vezes você avaliou algum comportamento de uma mulher como WPP?

A discussão proposta aqui só é possível fazendo um recorte relacionado ao sexo da pessoa e por esse motivo que tal questionamento é tão importante antes de iniciar a discussão de fato.

Há algum tempo eu venho ouvindo espaçadamente diferentes clientes mulheres invalidando seus próprios sofrimentos através do uso da expressão WPP (Alves & Isidro-Marinho, 2010; Tsai et al., 2011). O WPP consiste em problemas fúteis de pessoas brancas que podem ser resolvidos rapidamente e possuem nenhuma importância social (Liporage, 2019). A principal referência do WPP no Brasil é a apresentadora Ana Hickmann que foi criticada em diversos momentos em função dos seus tuítes “sofridos”, tais como “Ainda bem que tem um jatinho me esperando. Senão, seria impossível!“, outro tuíte foi sobre o seu carro “Ganhei um carro blindado do meu marido que custa 500 mil reais. É a QUINTA vez que ele volta para a oficina com um problema sério.“. Essa é uma das explicações para o origem do termo no Brasil e é nela que esse texto está baseado.

A Ana Hickmann não possui W(hite)PP especificamente, a situação dela está mais para uma intersecção entre classe e raça, uma vez que ela e outras pessoas ricas – uma questão de classe (com pessoas quase sempre brancas) – reclamam de problemas que as pessoas não ricas jamais terão acesso [mas sabemos que a população mais pobre é a população negra]. Se grande parte das pessoas ricas são brancas, qual o problema em denominar os problemas das pessoas brancas como WPP?

  • Primeiramente porque nesse caso a ordem dos fatores altera sim o resultado, pois quase todos os ricos são brancos, mas a maior parte das pessoas brancas não são ricas.

  • Em segundo lugar porque apesar de envolver classe e raça; as principais pessoas criticadas são as mulheres (uma questão de sexo!).

  • Em terceiro lugar porque o termo WPP é derivado de um outro termo misógino “White Girls Problems“, o que nos leva a questionar o termo WPP no nível do sexo/gênero.

  • Em quarto lugar porque a intersecção classe, raça e sexo nos mostra que o WPP tem sido utilizado socialmente para zombar quase sempre de mulheres chamadas de fúteis – que quase nunca são – e muito raramente de homens (na realidade eu nunca presenciei!).

Mulheres como a Ana Hickmann não representam as mulheres (inclusive as brancas) do nosso país. A apresentadora talvez represente outras mulheres ricas que vivem no universo em que ela vive. Nosso país é diverso demais e grande parte da concentração de renda está nas mãos de homens brancos; porém, estes raramente são atacados na zombaria do WPP. Voltando ao segundo parágrafo, eu tenho ouvido diversas auto invalidações de mulheres utilizando o termo WPP diante de sofrimentos do dia-a-dia, dores que qualquer pessoa que não seja rica irá sofrer, alguns mais e outros menos.

A verdade é que quase sempre o sofrimento trazido pelas mulheres nos consultórios é genuíno, não se relaciona com WPP (quando a mulher não faz parte do time rico da Ana Hickmann) e ainda representa grande parte da experiência aversiva de muitas outras mulheres no Brasil afora, independente da cor da pele (obviamente que a cor da pele deixa as mulheres mais vulneráveis a qualquer tipo de ataque ou violência e isso precisa ser considerado nessa análise). Mulheres sofrem por serem mulheres, por carregarem fardos pelo único e exclusivo fato de que nasceram mulheres e termos mal utilizados, mal explicados ou generalizados de forma inadequada (White Girls Problems) tendem a aumentar ainda mais o sofrimento destas.

A generalização (Moreira & Medeiros, 2007; Skinner, 1953/2003) do WPP pode ser explicada ao compreender que um comportamento ou uma classe de respostas passa a ocorrer na presença de algum outro ou outros estímulos que possuem propriedades semelhantes (funcionais e/ou topográficas) ao estímulo considerado original, ou seja, denominar WPP (comportamento) para qualquer reclamação ou descontentamento de uma mulher branca sobre algo que não seja considerado “muito grave”, que não a coloque em risco, que não a deixe vulnerável ou que não a coloque em situação de violência extrema (generalização da Ana Hickmann para todas as mulheres brancas independente de serem ou não ricas).

Além do WPP, um outro termo compatível com o mesmo utilizado em alguns países de língua inglesa é o “Champagne Problems” que não carrega diretamente consigo as questões de raça (lembrando que quanto maior o poder aquisitivo, maior a probabilidade de que estejamos falando de pessoas brancas). Porém, novamente coloca em questão a futilidade feminina, pois são as questões femininas que ficam mais uma vez evidenciadas. Esse termo é comumente usado para criticar problemas (geralmente femininos) considerados cotidianos e banais, tais como: se sentir desvalorizada em casa pelos filhos e marido, querer mais da vida do que um casamento e a maternidade, ter um marido que faz menos do que o mínimo em casa, entre outras questões. Nenhum desses problemas são de grande impacto social, mas são problemas da vida real e que afetam a vida real todos os dias de todas as mulheres levando-as ao sofrimento psíquico que acaba por ser invalidado através desse termo “Champagne Problems” ou no Brasil através do termo WPP.

Nós, enquanto psicólogas e psicólogos precisamos nos tornar letrados em sexo, raça e classe e, para além do letramento, é necessário aprender a enxergar os vieses e a inter-relação destes. As discussões sobre raça tem crescido e os espaços, felizmente, têm sido cada vez mais ocupados por pessoas negras, mesmo que essa ocupação ainda seja muito discreta. Nós, como pessoas brancas, podemos facilitar acessos, dar espaços que foi nos dado só por sermos pessoas brancas, entre outras ações para aumentar a quantidade de pessoas negras em todos os espaços, inclusive (e principalmente) na psicologia. Utilizar WPP como forma de caçoar alguém (principalmente mulheres) parece não tornar a ocupação dos espaços das pessoas negras mais possível – na realidade, tal zombaria evoca vergonha e culpa em mulheres que já estão sendo muito estigmatizadas (Fideles , & Vandenberghe, 2014). No fim, eu acredito que ninguém saia “ganhando” com essa situação – nem mulheres brancas, nem pessoas negras e ainda auxiliamos a manter o status quo dos homens brancos [enfim, apenas eles saem ganhando, como sempre!].

Por fim, para compreender melhor o preconceito racial e se tornar uma pessoa branca que atue em seus espaços de forma antirracista, eu sugiro todos os trabalhos publicados da psicóloga e pesquisadora Táhcita Medrado Mizael, especificamente seu artigo em coautoria com o psicólogo e pesquisador Júlio César de Rose intitulado “Contribuições do paradigma de equivalência de estímulos para o estudo das atitudes” (2016), visto que foi nesse material que ficou claro para mim o quanto estereótipos e preconceitos estão inter-relacionados e podem ser modificados.

Referências:

Alves, N. N. F.; Isidro-Marinho, G. (2010). Relação terapêutica sob a perspectiva analítico-comportamental. Em: de-Farias, A. K. C. R. (org.), Análise Comportamental Clínica – Aspectos Teóricos e Estudos de Caso. Porto Alegre: Artmed.

Fideles, M. N. D. & Vandenberghe, L. (2014). Psicoterapia Analítica Funcional Feminista: Possibilidades de um Encontro. Psicologia: Teoria e Prática16(3), 18-29. http://dx.doi.org/10.15348/1980-6906/psicologia.v16n3p18-29.

Moreira, M. B., & Medeiros, C. A. (2007). Princípios Básicos de Análise do Comportamento. Porto Alegre, Artmed.

Skinner, B. F. (1956/2003). Ciência e Comportamento Humano. São Paulo: Martins Fontes.

Táhcita, M. M. & de Rose, J. C. (2016). Contribuições do paradigma de equivalência de estímulos para o estudo das atitudes. Interação em Psicologia, 20(2), p. 124-134. http://dx.doi.org/10.5380/psi.v20i2.46278

Tsai, M; Kohlenberg, R. J.; Kanter, J. W.; Kohlenberg, B.; Follette, W. C. & Callaghan, G. M. (2011). Um Guia para a Psicoterapia Analítico Funcional (FAP): Consciência, Coragem, Amor e Behaviorismo. Santo André: ESETec.

Liporage, 2019 https://medium.com/revista-subjetiva/quem-disse-que-branco-n%C3%A3o-pode-ser-zoado-entrevistando-a-white-people-problems-79894a7e7c00

https://www.nancyjanesmith.com/blog/why-i-hate-the-phrase-champagne-problems#:~:text=According%20to%20Urban%20Dictionary%2C%20Champagne,have%20an%20issue%20with%20it.

Como citar este artigo:

Silva, A. C. A. (2024, 8 de novembro). Uma Intersecção entre Classe, Raça e Sexo. Blog do IBAC. https://ibac.com.br/uma-interseccao-entre-classe-raca-e-sexo/

Escrito por:

Ana Clara Almeida Silva

Psicóloga, Doutoranda e Docente do curso de Pós-Graduação em Análise Comportamental Clínica e no curso de Formação em FAP do IBAC.

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