
O ser humano costuma gostar de ordem: se tem um comportamento, a gente quer classificá-lo. Só que, como lembra Hélio Guilhardi, essa mania de classificar às vezes diz mais sobre quem classifica do que sobre o comportamento em si. Classificar, afinal, também é um comportamento, controlado por contingências sociais e verbais que organizam o modo como o analista interpreta o mundo.
Do ponto de vista técnico, todo comportamento é funcional. Funcional no sentido de ser determinado por contingências de reforçamento, sejam elas de reforço positivo, negativo, punição ou extinção. O comportamento que produz sofrimento, o que “não faz sentido”, o que parece autodestrutivo, todos operam porque foram modelados e estão sendo mantidos por condições de reforçamento. Dizer que algo é “disfuncional” é cair na armadilha de confundir o critério moral ou clínico do observador com a função comportamental. É como se disséssemos “isso não funciona”, quando o que queremos dizer é “isso funciona, mas com custo alto”. A consistência conceitual exige que a gente descreva as funções e consequências, e não rotule a topografia.
A mesma lógica vale para “desejável” e “indesejável”. Esses termos pertencem ao vocabulário das agências de controle moral e institucional: religiões, leis, códigos, normas culturais. Quando um comportamento é classificado como indesejável porque “não deveria acontecer”, quem está falando não é o analista, é o moralista. Guilhardi é claro: o psicoterapeuta não deve adotar critérios externos à Psicologia, sob risco de transformar a clínica em campo de punição social.
Já “desejado” e “indesejado” são conceitos úteis, desde que contextualizados. O comportamento é desejado no contexto do cliente quando produz reforços positivos naturais ou melhora sua qualidade de vida, e indesejado quando mantém sofrimento ou reduz contato com reforçadores relevantes. Não há universal aqui, há análise de função, topografia e consequência sob controle do ambiente real em que o cliente vive.
E é nesse ponto que a discussão volta pro começo. Se todo comportamento é funcional e a avaliação de desejabilidade depende do contexto, o que sobra pra chamar de disfuncional é o nosso próprio modo de classificar. O analista precisa se perguntar: a que contingências estou respondendo quando uso o rótulo “disfuncional”? Estou sob controle do sofrimento do cliente, de regras culturais, da minha formação teórica, da pressa em organizar o caos? Essa é a virada que Guilhardi propõe: o foco não é o nome que damos ao comportamento, mas as contingências que controlam tanto o comportamento quanto a nossa nomeação dele.

Essa reflexão de Guilhardi, pra mim, conversa diretamente com a postura não julgadora descrita por Marsha Linehan na DBT. Mas aqui vale traduzir “não julgar” para a nossa língua: não é neutralidade emocional ou condescendência terapêutica, é precisão analítica. Na prática, adotar uma postura não julgadora significa algo que amamos DESCREVER. É observar sem adjetivar, descrever antes de interpretar, identificar função antes de nomear defeito.
Linehan propõe que o terapeuta pratique observar, descrever e participar da experiência sem atribuir valor, exatamente o que um analista do comportamento faz quando descreve uma contingência de reforçamento em vez de avaliar moralmente o comportamento. Sob controle dessa postura, o terapeuta se aproxima de um estado verbal em que o comportamento é governado por discriminações precisas das condições atuais, e não por regras culturais antigas ou por ansiedade em “corrigir” o outro.
Pelo menos neste ponto, ambos descrevem o mesmo fenômeno: o terapeuta como parte das contingências, não como seu juiz. Classificar sem analisar é agir sob controle de regras aversivas; observar sem julgar é operar sob controle das contingências reais e compromisso ético. Em ambos os casos, o caminho é a mesma: olhar o comportamento, inclusive o nosso, com curiosidade funcional, e não com pressa avaliativa.
Leitura sugerida
Guilhardi, H. J. (2018). Classificação básica dos comportamentos na psicoterapia: funcional–disfuncional; desejável–indesejável; desejado–indesejado. Instituto de Terapia por Contingências de Reforçamento.
Linehan, M. M. (2015). DBT skills training manual (2nd ed.). New York, NY: Guilford Press. (Capítulo sobre “mindfulness e postura não julgadora”, como exercício de observar sem avaliar, aplicável aqui não como técnica, mas como prática de análise de contingências antes da avaliação moral.)
Como citar este Artigo (APA):
de Lima, I. (2025, 7 de novembro). Quando tudo é funcional, o que sobra pra chamar de disfuncional?. Blog do IBAC. https://ibac.com.br/quando-tudo-e-funcional-o-que-sobra-pra-chamar-de-disfuncional/


