Psicoterapia feminista, movimento feminista e liberdade

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Todos os textos escritos e compartilhados neste blog perpassam por reflexões que eu tenho tido ao longo da minha vida e ao longo dos meus dias através de um entrelaçamento de experiências. A ideia deste texto surgiu principalmente a partir de alguns diálogos que eu tive com minha amiga, colega de profissão, psicóloga e doutora em psicologia, Melina Vaz. Melina, te agradeço pelos dias em que estivemos juntas e pela troca intensa que permitiu a escrita desse texto.

A psicoterapia feminista é uma forma de promover uma prestação de serviços em psicologia clínica considerando as questões únicas do sexo feminino. A mesma não se configura como uma abordagem psicológica, uma vez que qualquer terapeuta pode (e deveria) incluir questões da socialização do sexo feminino em seus atendimentos. Em uma visão psicoterapêutica feminista, compreende-se que o sofrimento das mulheres é iniciado prematuramente ainda dentro do útero de sua mãe, já que antes mesmo do seu nascimento, a organização para recepção dessa bebê é toda baseada em uma socialização para performance da feminilidade (Fideles & Vandenberghe, 2014).

Apesar de existir um consenso entre algumas terapeutas sobre a necessidade de utilizar o feminismo dentro da prática clínica psicológica, ainda não existe um consenso sobre a forma como utilizá-lo. Essa falta de consenso parece ocorrer em função das diversas formas de compreender o conceito feminismo, as especificidades de cada população e suas ondas.

Uma onda feminista refere-se a um movimento militante e/ou acadêmico que acontece em algum momento da história que leva em consideração questões importantes das mulheres e debates realizados naquela época. Sendo assim, cada terapeuta feminista se identifica com partes ou totalidade de alguma onda ou discussão do movimento feminista, o que interfere diretamente em suas intervenções e consequentemente em sua prática clínica. Para maior entendimento acerca da forma de intervir das terapeutas feministas, segue uma breve explicação sobre cada onda:

  • Primeira onda: Datada entre o fim do século XIX e meados do século XX, tendo como maior foco a busca pelo direito ao voto, sendo que as mulheres que estavam nessa luta foram denominadas de sufragistas (mulheres negras foram excluídas desse movimento);

  • Segunda onda: Teve seu início nos anos 1950 se estendendo até os anos 1990, tendo como foco estudos sobre a opressão feminina. Esse movimento ficou conhecido como feminismo radical, ou seja, um feminismo que buscou/busca compreender a raiz dos problemas das mulheres – a exploração sexual e reprodutiva do sexo feminino. É nesse momento histórico que se inicia a distinção entre sexo e gênero, sendo sexo uma condição biológica e gênero uma construção social imposta à pessoa a depender do seu sexo;

  • Terceira onda: Surgiu nos anos 1990 dando continuidade, inicialmente, às reinvindicações da primeira onda; porém, adicionou a questão da interseccionalidade, provocando uma cisão entre as mulheres feministas. É na terceira onda que o feminismo se volta para o empoderamento individual (diferente do feminismo radical que possui uma postura coletiva), assumindo a ‘liberdade de escolha’ de cada mulher, se apropriando do estereótipo da feminilidade e retirando a prostituição e pornografia do espectro da violência e destinando-as para o espectro da sexualidade;

  • Quarta onda: Ainda não existe um consenso sobre a quarta onda, uma vez que não há uma coesão teórica desse movimento. Essa onda é caracterizada principalmente pelo uso maciço das redes sociais para difusão das ideias feministas principalmente da terceira onda.

Cada terapeuta feminista se identifica e se movimenta dentro dos ideais feministas de cada onda. Para melhor compreensão, irei exemplificar uma possível forma de compreender um caso através da segunda e terceira ondas de uma cliente que se prostitui. Caso uma mulher que se prostitui buscasse por psicoterapia, uma terapeuta feminista que se identifica com a segunda onda provavelmente trabalharia em cima da conscientização da exploração sexual advinda da prostituição, formas de sair da prostituição e busca por saídas para que o corpo daquela mulher não fosse mais explorado pelo capital. Já uma terapeuta de terceira onda provavelmente trabalharia no empoderamento individual que a prostituição promove para aquela mulher. São posicionamentos completamente antagônicos, formulações de caso totalmente distintas e conduções terapêuticas que irão levar a diferentes desfechos.

Independentemente da identificação da terapeuta diante das ondas do feminismo, a mesma precisa estar aberta para ouvir a cliente diante de suas necessidades. Para tanto, é necessário que a terapeuta trabalhe com a cliente consciência e autoconhecimento acerca do seu próprio sofrimento. Apesar da identificação com alguma onda feminista, uma terapeuta feminista jamais poderá levar isso para o consultório em um formato de regra (clínica não é militância, mas isso fica para outro texto!). Isto é, a terapeuta não deve dar uma ordem verbal sobre o que é correto/incorreto para sua cliente ou o que ela deve ou não deve fazer sobre a forma como a mesma vive – salvo em situações onde a vida da cliente está em risco (Alves & Isidro-Marinho, 2010). Uma terapeuta que descreve como a cliente deve ou não deve se comportar diante de situações diversas, inclusive situações relacionadas ao machismo, não vai conseguir proporcionar que a cliente desenvolva repertório comportamental para se adaptar às mudanças ambientais que acontecem ao longo de sua vida (Medeiros, 2010).

Sendo assim, quando a terapeuta frequentemente diz o que a cliente tem que fazer, esta não cria condições para que a mesma busque e encontre soluções para seus próprios problemas. Tal situação pode funcionar como reforçador generalizado para a terapeuta, uma vez que cria uma dependência da cliente e a terapeuta pode vir a se sentir importante e indispensável na vida da cliente (esse é um dos tantos motivos pelos quais terapeutas precisam fazer terapia). Além do mais, tal situação gera insensibilidade ao contexto para a cliente, dificultando que a mesma não desenvolva repertórios de independência e ações mais livres em sua própria vida, sendo a liberdade (considerando suas limitações) um dos grandes objetivos da psicoterapia (Alves & Isidro-Marinho, 2010).

No que se refere à liberdade, uma das formas da análise do comportamento de compreender esse conceito é entendê-lo como um sentimento que se dá através da diminuição ou eliminação da coerção (Dittrich, 2012), diferindo do pensamento difundido socialmente de liberdade como algo abstrato. Desta forma, a coerção parece ser um dos principais elementos que impede que a pessoa experimente o sentimento de liberdade. Ou seja, quanto mais a pessoa sente que fez uma escolha sobre algo que ela quis, mais livre tende a se sentir. (Andrade & Regis Neto, 2010).

Ao pensar sobre psicoterapia feminista, movimento feminista e liberdade, faz-se necessário compreender que o feminismo busca pela emancipação política das mulheres, ou seja, uma busca pela abolição de instituições (ou agências de controle, em uma linguagem analítico-comportamental) que auxiliam na manutenção da subordinação e exploração das mulheres perante aos homens. Por um outro lado, o empoderamento feminino vem sendo vendido (e utilizado em consultório) também como uma forma de experimentar a liberdade, inclusive no que se refere à manutenção da participação das mulheres na prostituição e pornografia. Ambos os conceitos são antagônicos na busca pela liberdade, sendo o primeiro mais relacionado ao feminismo radical e o segundo mais relacionado à terceira onda do feminismo.

Se autodenominar terapeuta feminista não é o suficiente para salientar práticas clínicas que buscam e lutam pela liberdade feminina. Uma terapeuta feminista deve questionar constantemente:

  1. O que tem exercido em sua prática clínica;
  2. Se tais práticas têm funcionado como uma forma de auxiliar mulheres a experimentarem uma vida mais livre; ou
  3. Se tais práticas têm propagado um falso empoderamento baseado na objetificação feminina como liberdade individual, na manutenção dos estereótipos de gênero e na manutenção de instituições patriarcais.

Referências:

Alves, N. N. F.; Isidro-Marinho, G. (2010). Relação terapêutica sob a perspectiva analítico-comportamental. Em: de-Farias, A. K. C. R. (org.), Análise Comportamental Clínica – Aspectos Teóricos e Estudos de Caso. Porto Alegre: Artmed.

Andrade, D. M.; Neto, D. M. R. (2012). Liberdade e autocontrole: Uma discussão sob o enfoque analítico-comportamental. Em: Pessôa, C. V. B. B.; Costa, C. E.; Benvenuti, M. F. (Orgs.). Comportamento em Foco,1, 45-59. https://abpmc.org.br/wp-content/uploads/2021/08/14051224948bfcea692.pdf

Dittrich, A. (2012). O conceito de liberdade e suas implicações para a clínica. Em: Borges, N. B.; Cassas, F. A. Clínica analítico-comportamental: aspectos teóricos e práticos. Porto Alegre: Artmed.

Fideles, M. N. D.; Vandenberghe, L. (2014). Psicoterapia analítica funcional feminista: possibilidades de um encontro. Psicologia: Teoria e Prática, 16(3), 18-29. http://dx.doi.org/10.15348/1980-6906/psicologia.v16n3p18-29

Medeiros, C. A. (2010). Comportamento governado por regras na clínica comportamental: algumas considerações. Em: de-Farias, A. K. C. R. (org.), Análise Comportamental Clínica – Aspectos Teóricos e Estudos de Caso. Porto Alegre: Artmed.

www.qgfeminista.org

Escrito por:

Ana Clara Almeida Silva

Psicóloga, Doutoranda e Docente do curso de Pós-Graduação em Análise Comportamental Clínica e no curso de Formação em FAP do IBAC.

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