Psicopatologia é doença?

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Numa análise histórica do desenvolvimento da humanidade, percebe-se que padrões comportamentais atípicos sempre estiveram presentes. A diversidade é intrínseca à natureza, o que supõe a ocorrência de manifestações excêntricas e, muitas vezes, desviantes do que é considerado a norma. Enquanto humanos, desenvolvemos a capacidade de consciência reflexiva a respeito do que somos, fazemos e sentimos, o que implica que, além de sofrermos, sabemos que sofremos e podemos nos interrogar sobre as causas.

A partir dessa capacidade exclusivamente humana, tentativas de descrições e explicações de padrões excêntricos de comportamento foram desenvolvidas, aproximadamente, pelo menos desde o século 5 a.C., na Grécia antiga. No entanto, observa-se mudanças importantes nesta busca por seus significados, desde descrições que, inicialmente, envolviam justificativas tal como possessão demoníaca, bruxaria ou punição de deuses, até a compreensão destas “anormalidades” enquanto problemas de saúde.

Principalmente a partir do século XVIII, a “loucura” passa a ser considerada uma entidade patológica e observa-se, então, o deslocamento de explicações espirituais para justificativas biologicistas. Essa mudança de entendimento sobre o fenômeno foi particularmente importante pelas implicações sobre os tratamentos despendidos. Enquanto a “possessão demoníaca” justificava o isolamento social dos ditos loucos, a compreensão patológica da loucura supõe a necessidade de reuni-los em local adequado para, de fato, tratar o curso da doença.

Nesse sentido, o tratado médico-filosófico sobre alienação mental de Pinel, no século XIX, ampliou o saber psiquiátrico, apontando a necessidade de observar, classificar e tratar as doenças mentais em instituições adequadas a partir de metodologias morais e mudanças de rotina. Também ao longo dos séculos XIX e XX, Kraepelin fortaleceu a compreensão de que as doenças mentais eram causadas por desordens genéticas e biológicas, trazendo o enfoque a determinações de desequilíbrios neuroquímicos e danos cerebrais, o que influencia até hoje a área de saúde mental.

Desse modo, a noção de doença mental e a criação de hospitais especializados data dos últimos 200 anos e o campo da Psicopatologia de desenvolve e fortalece no século XX, no exercício constante de definir o que é normalidade e o que é doença.

As psicopatologias são descritas a partir da manifestação pública de comportamentos considerados bizarros e do relato verbal do paciente e de seus familiares. Não há, portanto, exames laboratoriais ou físicos que confirmem os diagnósticos, o que faz com que sejam extremamente vulneráveis às interpretações particulares de quem os faz. Ademais, os critérios que estabelecem o que é considerado normal ou patológico são voláteis e completamente influenciados pela cultura, o que faz com que categorias diagnósticas sejam abandonadas, enquanto outras sejam descritas a partir de cada nova publicação de manuais psiquiátricos, referências para profissionais de saúde mental. Pode-se citar como exemplo o “Homossexualismo” que, até a década de 80 do século XX, estava descrito enquanto uma psicopatologia e hoje é considerado uma manifestação saudável da sexualidade humana. Diagnósticos como “síndrome de burnout” e “transtorno dos jogos eletrônicos”, por outro lado, vêm sendo considerados psicopatologias contemporâneas, que envolvem fenômenos que não fariam sentido no século passado.

Apesar desta compreensão de transtornos mentais enquanto patologia ter ocasionado mudanças que estabelecem contextos de tratamento eficazes de padrões comportamentais que envolvem sofrimento intenso, a falsa simetria entre psicopatologias e doenças orgânicas leva e um entendimento errôneo. Enquanto patologias orgânicas abrangem desvios de normas biológicas, psicopatologias envolvem desvios de normas sociais, que são necessariamente temporais, locais e mutáveis. Dessa maneira, podemos testemunhar, por exemplo, o “Homossexualismo” deixando de ser considerado uma doença, mas seria improvável que ocorresse o mesmo com a AIDS.

Além disso, ao contrário de uma patologia clássica, em que se observa mutações ou aberrações que não respondem a leis gerais de desenvolvimento, psicopatologias envolvem padrões comportamentais que podem estar presentes numa rotina considerada saudável. Isso quer dizer que um mesmo comportamento (referindo-se à topografia da resposta) pode ser normal ou anormal dependendo do contexto.

Observe a figura abaixo:

APA (2014)

É bastante provável que você mesmo ou que você conheça alguém que já tenha sentido o que está descrito em algum momento da vida. Trata-se de alguns critérios diagnósticos do Transtorno de Ansiedade Generalizada, segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM 5). No entanto, o que torna essas manifestações uma psicopatologia é a sua duração, frequência e intensidade.

Para analistas do comportamentos, ao contrário da psicopatologia clássica, que estabelece critérios de normalidade a partir de uma análise estatística e da compreensão de comportamentos bizarros e caóticos, o entendimento é que qualquer comportamento ou padrão comportamental, por mais desviante da norma que seja, passou por um processo de aprendizagem. Esse processo envolve contextos históricos que favoreceram seu desenvolvimento e contingências atuais que participam da sua manutenção.  

Nesse sentido, ao se compreender as psicopatologias tal como qualquer outra doença “física”, as quais são percebidas por meio de manifestações sintomáticas a partir de problemas em sistemas do organismo, o foco de explicação volta-se para possíveis desorganizações bioquímicas e fisiológicas do cérebro, que deverão ser, então, corrigidas.

Como consequência, as expectativas de tratamento podem enfocar principalmente o uso de psicofarmacologias, em detrimento de análise contextuais, que permitem alterações em contextos potencialmente adoecedores. Numa analogia, se vivo em um ambiente empoeirado e meu organismo é extremamente vulnerável à presença de ácaro, apresentarei respostas envolvidas em um processo alérgico. No entanto, por mais incômoda e incapacitante, a minha resposta alérgica tem uma função relevante de proteção, não é uma resposta inadequada. A utilização de medicações pode ser essencial para o restabelecimento da minha saúde, mas a alteração de contingências também é fundamental para alcançar bons resultados a longo prazo.  

A capacidade crítica de compreender as especificidades do adoecimento em saúde mental deve fazer parte da nossa formação enquanto psicólogos, tanto quanto o conhecimento técnico e a experiência para exercermos com responsabilidade a nossa profissão.

Indicações de Leitura

American Psychiatric Association. (2014). DSM-5: Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Artmed Editora.

Bueno, G. N., Nobrega, L. G., Magri, M. R., & Bueno, L. N. (2014). Psicopatologias de acordo com as abordagens tradicional e funcional. Comportamento em foco, 27.

Zamignani, D., Marcone, R., Vermes J., & Kovac, R. (2012). Psicopatologia. Em M.M.Hubner (Org.),Temas clássicos da psicologia sob a ótica da análise do comportamento, 154-166. Rio de Janeiro: Guanabara. 

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