Nas últimas décadas, assistimos a uma profunda transformação nas formas de atuação profissional, especialmente no campo da saúde mental. As redes sociais, ao se tornarem centrais na disseminação de informações, criaram condições para que novos repertórios, em meio à era midiática, fossem relevantes na prática do psicólogo. A figura do psicólogo, antes associada à escuta clínica e à reflexão ética, agora é atravessada por exigências de performance, marketing pessoal e presença digital. Curtidas, seguidores e engajamento substituem, muitas vezes, os critérios tradicionais de formação, experiência e compromisso com o sofrimento humano.

Esse novo repertório performático é construído pelas dinâmicas de um ambiente digital guiado por algoritmos e pela lógica do capital. Em vez de simplesmente apresentar-se em termos profissionais, as pessoas são compelidas a produzir versões editadas de si mesmas, e com o potencial de produzir engajamento. É como se houvesse uma grande peça teatral, sob a direção da Meta, em que é preciso representar diferentes papéis nesse espaço, pelo menos se o profissional quiser ter alguma relevância (seguidores e likes). Sob esse modelo, a produção, o desempenho do psicólogo, o rendimento constante e o esforço mecânico são projetados como ideais nos recortes dos perfis profissionais. E, como observa Byung-Chul (2015), a sociedade do desempenho substitui a sociedade disciplinar, deslocando o controle externo para um regime de autoexploração voluntária, no qual o sujeito é simultaneamente explorador e explorado de si mesmo.
No campo da psicologia, tal dinâmica não apenas tensiona os fundamentos éticos da profissão, como também evidencia a mercantilização da saúde mental, que se expressa na proliferação de cursos terapêuticos de rápida aplicação, na superficialização estética da prática clínica e na banalização de títulos acadêmicos e profissionais. Transforma-se a psicologia em um modelo produtivista e competitivo. Para Boaventura (2007), esse processo pode ser compreendido como uma expressão do “colonialismo epistêmico”, no qual saberes críticos e localizados são silenciados em favor de práticas globalizadas e supostamente superiores, frequentemente importadas de contextos hegemônicos.
Diante desse cenário, torna-se urgente refletir sobre o lugar da ética em um tempo em que a psicologia e, por que não, a própria vida, se veem capturadas por mecanismos de valorização que privilegiam a aparência, o consumo e a produtividade.
A performatividade digital e o esvaziamento ético da prática em saúde mental
A crescente presença de profissionais da saúde mental nas redes sociais introduziu novos modos de existir profissionalmente, fundados menos na escuta clínica e no compromisso ético, e mais na visibilidade e no engajamento. Nesse novo cenário, a atuação do psicólogo é frequentemente guiada pela performance, que deslocam a centralidade da clínica para o campo da exposição midiática. Como consequência, práticas clínicas tornam-se estratégias de autopromoção, e a ética profissional passa a ser moldada por algoritmos e tendências de mercado.

Essa dinâmica pode ser interpretada à luz da teoria da performatividade social de Erving Goffman. Para o autor, “a vida social é como um palco, e todos nós somos atores desempenhando papéis” (Goffman, 1959). Contudo, nas redes digitais, essa metáfora do palco adquire novos contornos: o ator já não representa apenas diante de uma audiência momentânea, mas se vê permanentemente exposto, mensurado e avaliado por métricas como curtidas, compartilhamentos e número de seguidores. O “palco” é agora governado por algoritmos, que recompensam a aderência a certos padrões de visibilidade e punem o silêncio ou o posicionamento dissonante.
Byung-Chul (2015) aprofunda essa discussão ao afirmar que vivemos em uma “sociedade do desempenho”, onde o sujeito de desempenho acredita estar se realizando, quando na verdade está se autoexplorando. O psicólogo que busca relevância nas redes, muitas vezes, passa a assumir um repertório performativo, deslocando a centralidade de sua atuação da escuta clínica para a produção incessante de conteúdo. A identidade profissional, antes ancorada na clínica, é cada vez mais moldada como uma marca a ser gerida.
Essa busca constante por atenção e validação midiática compromete a qualidade do vínculo terapêutico, já que o foco desloca-se do sujeito atendido para a manutenção de uma imagem pública. Como resultado, a ética profissional, tradicionalmente sustentada por princípios como sigilo, escuta, empatia e singularidade, é, por vezes, substituída por estratégias de branding pessoal. A lógica da exposição constante tende a homogeneizar discursos, promovendo práticas padronizadas, superficiais e descontextualizadas, que se afastam do compromisso com a complexidade do sofrimento humano.
Além disso, o ambiente digital reforça uma estética da positividade e da produtividade, que se opõe à própria lógica do trabalho clínico, marcado pela escuta do sofrimento, da ambiguidade e do não saber. Como alerta Han (2015), “a sociedade do desempenho não permite a negatividade; ela tende a eliminar tudo o que possa ser disfuncional, improdutivo ou inútil” (p. 31). Assim, o sofrimento humano, enquanto experiência que não se traduz facilmente em imagens ou frases de efeito, acaba distorcido em nome da manutenção de uma imagem idealizada da prática terapêutica.
Essa estetização da prática e a exposição contínua dos profissionais nas redes não apenas produzem um esvaziamento ético, mas também instauram uma lógica meritocrática e competitiva entre colegas, onde o valor profissional passa a ser medido pelo alcance digital. Como consequência, instala-se um ambiente de precarização do discurso, onde o reconhecimento social do trabalho deixa de estar vinculado à profundidade da escuta e ao rigor técnico, sendo substituído pela performance bem editada e pela linguagem motivacional ultra simplificada.
A lógica da mercantilização da saúde mental, alimentada pelas redes sociais e pelo neoliberalismo, não se limita à performatividade digital. Ela também se manifesta na crescente valorização simbólica de certos títulos, experiências internacionais e certificações que operam como marcadores de prestígio, muitas vezes, desvinculados de um compromisso crítico com o contexto social e histórico no qual a prática clínica se insere. A valorização de saberes estrangeiros como superiores reflete não apenas um viés colonial, mas também a lógica de mercado que privilegia certificações como capital simbólico.

Nesse contexto, o capital simbólico, conceito desenvolvido por Pierre Bourdieu (1989), passa a operar como uma moeda de valorização profissional nas redes. Títulos, instituições de prestígio e vivências internacionais não são apenas credenciais, mas signos de distinção que produzem hierarquias e reforçam desigualdades. Segundo Bourdieu (1989), “o capital simbólico é o poder de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou transformar a visão do mundo” (p. 23). Assim, quem detém esses marcadores é capaz de produzir uma imagem de autoridade que, muitas vezes, não está necessariamente vinculada à prática clínica efetiva ou ao rigor técnico, mas sim à capacidade de performar prestígio no espaço digital.
Esse movimento contribui para o esvaziamento da formação crítica e do trabalho clínico aprofundado, substituídos por um acúmulo de títulos frequentemente utilizados como “adornos curriculares” nas redes. Pós-graduações se tornam marcas na biografia profissional; certificações são convertidas em provas sociais de competência, mesmo quando não implicam experiência prática. Em alguns casos, o uso do título de “supervisor clínico” ocorre sem o devido preparo técnico, funcionando como um selo de autoridade cuja função é, mais do que orientar, atrair clientes e consolidar uma marca pessoal.
A atuação profissional em saúde mental, especialmente no contexto das redes sociais, vem sendo atravessada por uma lógica de mercado que transforma saberes clínicos em produtos consumíveis. Cursos, workshops e mentorias proliferam sob a promessa de acelerar processos terapêuticos, fornecer “fórmulas” para a escuta clínica e, sobretudo, gerar lucro. Nesse cenário, a psicologia deixa de ser concebida como prática relacional, crítica e ética, para se tornar um conjunto de técnicas e conteúdos empacotados, muitas vezes desvinculados de uma prática clínica consistente.
Assim, a comercialização da saúde mental, impulsionada pela lógica neoliberal e pelas dinâmicas das redes sociais, tem promovido uma reconfiguração profunda da prática psicológica. A ética, o cuidado e o saber clínico têm sido progressivamente substituídos por estratégias de visibilidade, discursos de alta performance e práticas mercadológicas que transformam o sofrimento humano em mercadoria. Seguidores, títulos e certificações passaram a operar como moedas de valorização simbólica, criando um mercado onde o prestígio muitas vezes se sobrepõe ao compromisso ético e técnico com a escuta.
Nesse contexto, a prática psicológica é moldada por imperativos de produtividade, positividade e autogerenciamento, que silenciam a dor legítima e promovem uma psicologização alienante e superficial. O sofrimento psíquico, em vez de ser acolhido como expressão da complexidade humana, é convertido em um obstáculo à performance, algo a ser corrigido de forma rápida, eficaz e, sobretudo, vendável. Com isso, a clínica corre o risco de tornar-se um espaço de ajuste do sujeito às demandas do sistema, e não um território de resistência, elaboração e transformação.

Diante desse cenário, urge aos profissionais resgatar a psicologia como prática ética, resistindo à redução do cuidado a métricas de engajamento. Como adverte Boaventura (2007), “não há transformação social sem transformação do conhecimento, e não há transformação do conhecimento sem transformação dos agentes do conhecimento” (p. 42). Cabe aos psicólogos e psicólogas interrogarem-se sobre os modos como estão sendo capturados por essa lógica de mercado e sobre os efeitos que tais práticas produzem no vínculo terapêutico, na ética profissional e na saúde mental de quem busca cuidado.
É preciso resgatar o lugar ético da psicologia como prática implicada com a singularidade, o sofrimento e a complexidade da existência humana. Isso exige um enfrentamento direto das formas contemporâneas de esvaziamento humano da clínica, da colonização do saber, da estetização do cuidado e da performatividade digital. Reafirmar a ética como eixo estruturante da prática psicológica é, hoje, um gesto político.
Se a psicologia deseja manter sua relevância social e seu compromisso com o cuidado, precisa resistir à tentação de adaptar-se integralmente à lógica do algoritmo e da mercadoria. Precisa, em outras palavras, reocupar o lugar da escuta em meio ao ruído da performance.
Diante da constatação dos impactos da lógica neoliberal sobre a prática psicológica, torna-se necessário não apenas resistir, mas também reinventar formas éticas de presença no espaço digital. Estar nas redes sociais, para profissionais da saúde mental, não precisa significar, necessariamente, uma rendição ao mercado, à performance ou à estetização da prática. É possível construir uma presença ética, crítica e comprometida com o cuidado, mesmo em meio a uma cultura guiada por métricas, engajamento e visibilidade.
Uma ética digital, nesse sentido, parte do reconhecimento de que a atuação on-line também é prática clínica, ainda que em outro registro. O modo como o profissional se posiciona, comunica, se relaciona com seus conteúdos e com sua audiência faz parte da construção de uma prática do cuidado com a dor do outro. Isso exige, antes de tudo, consciência das ferramentas e dos seus efeitos.
Essa ética digital pode se sustentar sobre alguns pilares:
- Transparência e responsabilidade com o saber partilhado: Diferenciar conteúdo informativo de conteúdo clínico; reconhecer os limites do que pode ou não ser veiculado publicamente; evitar promessas terapêuticas que generalizem processos individuais.
- Cuidado com a estética e a linguagem: Evitar o uso de frases de efeito, slogans ou conteúdos que banalizem o sofrimento; resistir à lógica do “conteúdo viral” como objetivo final.
- Coerência entre discurso e prática: Manter alinhamento entre o que se compartilha e o que se sustenta clinicamente; questionar se o conteúdo postado serve ao cuidado ou à autopromoção.
- Criação de espaços dialógicos: Usar as redes não apenas como vitrines, mas como lugares de troca, reflexão e questionamento ético — espaços que provoquem mais do que seduzam.
A proposta não é se ausentar das redes, mas desnaturalizar o modo dominante de estar nelas. Estar nas redes com ética é também uma forma de resistência. É reivindicar um outro tempo, um outro modo de disseminar conhecimento, e afirmar que o cuidado não se presta à lógica da mercadoria. É, sobretudo, lembrar que a psicologia, antes de ser conteúdo, é encontro entre singularidades.
Leituras sugeridas:
Bourdieu, P. (1989). O poder simbólico (R. C. Barbosa, Trad.). Bertrand Brasil. (Obra original publicada em 1977)
Conselho Federal de Psicologia. (2005). Código de Ética Profissional do Psicólogo (Resolução CFP nº 010/2005).
Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: Ensaio sobre a sociedade neoliberal (M. S. Mendonça, Trad.). Boitempo. (Obra original publicada em 2009)
Goffman, E. (1959). A apresentação do eu na vida cotidiana (M. R. Nasser, Trad.). Vozes. (Obra original publicada em 1959)
Han, B. C. (2015). A sociedade do cansaço (I. D. Janczarski, Trad.). Vozes. (Obra original publicada em 2010)
Santos, B. de S. (2006). A gramática do tempo: Para uma nova cultura política. Cortez.
Como citar este artigo (APA):
Carmo, P. H., & Carmo, L. N. (2025, ). Psicologia não é vitrine: a atuação do psicólogo não precisa de palco. Blog do IBAC. https://ibac.com.br/psicologia-nao-e-vitrine-a-atuacao-do-psicologo-nao-precisa-de-palco/
Artigo escrito em colaboração com:

Paulo Henrique B. do Carmo
Psicólogo clínico (CRP 03/3583), supervisor clínico, professor universtário e escritor.