“Não gosto de seu jeito de jogar”: BBB e esquemas de reforçamento

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“A casa mais vigiada do Brasil…” essa é uma das características do programa de televisão que já tem mais de 20 anos de ocorrência em sua versão brasileira: o Big Brother Brasil (ou BBB). A parte central do programa é sua configuração enquanto um reality show, uma modalidade de entretenimento que envolve a exposição de participantes a um contexto de interação que seja mais próximo possível do ‘ao vivo’.

Mesmo passando por adaptações no seu formato para alcançar um grande público, hoje, boa parte da estrutura do programa (tal como disponibilizado na TV aberta) mantém o aspecto central: Um grupo de pessoas é selecionado para conviver por um número definido de dias, semanalmente ocorrem tarefas para eleger um(a) líder (imune à possibilidade de sair do programa) e eleger pessoas que serão as alternativas de uma votação em que os expectadores decidirão sobre “quem volta e quem fica” na casa. Não podemos deixar de lembrar que tudo isso ocorre com a promessa de que uma grande quantidade em dinheiro será a premiação principal para o ganhador (embora a simples participação funcione como um evento alterador de condições de acesso financeiro e profissional).

Existem diferentes aspectos interessantes para pensar as contingências do “jogo” BBB. De fato, o programa é repleto de eventos que corroboram para a avaliação direta do desempenho dos participantes, tanto os eventos que simulam aspectos de um desafio de fato (ex.: castigo do monstro, provas de resistência), até os que não parecem emular diretamente um jogo ou regras de um jogo (como as festas e outros eventos não diretamente programados durante o dia). Ou seja, as pessoas entram no programa com foco nos milhões, e são submetidas a um contexto de observação do seu comportamento 24 h/dia: todos os repertórios, suas frequências e intensidades, que explicitam desde a forma das interações sociais, elementos da rotina etc., até suas visões de mundo e de homem, suas convicções, medos, anseios, dentre outros.

Muitos temas interessantes podem ser destacados aqui para discussão. Uma ênfase interessante, por exemplo, é sobre a ideia de “jogo” que tanto se comenta em relação ao programa e a forma como compreendemos o conceito de esquemas de reforçamento a partir da Análise do Comportamento.

Inicialmente, talvez seja interessante relembrar que esquemas de reforçamento são as “regras” da contingência para apresentação de reforços dada a ocorrência de determinadas respostas. Ou seja, esquemas de reforço determinam os critérios do reforçamento e, portanto, são definições importantíssimas para avaliarmos diferentes contingências que estejamos conduzindo alguma análise (Catania, 1999; Ferster & Skinner, 1957). Existem diferentes grupos de esquemas, de razão e de intervalo, mistos e múltiplos, dentre outros. Conhecer sobre a peculiaridade das regras de cada esquema e sobre qual a resultante em termos de processo comportamental em cada um deles pode ser interessante para compreendermos a diferença entre os efeitos de um reforçamento contínuo e de um reforçamento intermitente sobre a resistência do comportamento à extinção (Skinner, 1953/2003).

Trarei uma ênfase aqui sobre apenas um tipo de esquema, aquele em que as características parecem emular boa parte do que observo com a dinâmica do BBB. Dentre os tipos de esquemas, como explica Catania (1999), existe um esquema chamado de misto, um tipo de esquema complexo em que há a combinação de esquemas simples ocorrendo de forma alternada, mas sem haver uma sinalização (SD específico) que esteja correlacionada à ocorrência de cada esquema simples que compõem o esquema misto.

Comparado a outros esquemas em que há a correlação entre algum evento exteroceptivo e a ocorrência diferencial das contingências em vigor, no esquema misto não há. Em alguns casos, situações em que esquemas mistos estão em vigor podem até estabelecer condições para um controle discriminativo em relação ao próprio desempenho e ao controle temporal (Catania, 1999). Por outro lado, até que seja alcançado esse momento do controle discriminativo, muitos e longos períodos em extinção podem ter ocorrido, além de uma potencial situação de exposição “evitável” a aversivos de alta magnitude, dentre outros casos. No geral, esquemas mistos podem ser considerados como contingências que dificultam o controle discriminativo e o controle pelo próprio esquema (Hanley, Iwata & Thompson, 2001).

Jogos, quaisquer que sejam eles, eletrônicos ou não, de televisão ou não, são formados por elementos ou características que especificam, com clareza, o que precisa ser feito para que haja um(a) “ganhador(a)” que levará algum prêmio ou recompensa. Independentemente dos reforços serem naturais ou arbitrários, a contingência em uma situação de jogo é toda voltada para que os comportamentos ocorridos estejam minimamente ligados ao cumprimento de determinados desempenhos esperados.

Dito isso, o aspecto que mais me deixa reflexivo sobre o “jogo BBB” é: quais são suas regras? Quando faço essa pergunta, trata-se de uma dúvida, não sobre o que pode ou não pode ser feito a partir das regras de convivência humana (uma consideração básica que, independente desse jogo, deveria ser levada em conta), mas sobre o que é preciso ser feito para ganhar o jogo.

Essa não é só uma pergunta retórica, uma vez que parece interessante, para muitos, saber quais são as regras do jogo. Não há dúvidas que de o desempenho dos participantes é o fator fundamental em análise. Claro, por ser em um reality show, essa característica seria escancarada ao máximo. Entendo que se trata de um jogo ‘complexo’, já que a vitória depende, em última instância, da avaliação de um público que não interage diretamente com quem está jogando e que, portanto, não consegue dar feedback direto ou imediato sobre o desempenho observado.

Alguns diriam que o critério de avaliação do desempenho é o “entretenimento”, tendo-o como a base para se manter firme no programa, uma vez que o público quer assistir à um “enredo” criado dentro da casa, quase como se estivessem consumindo uma “novela ao vivo”. Porém, o conceito de entretenimento pode ser mais amplo do que se imagina, pode envolver diferentes topografias de respostas que destoam com o que um grande percentual de expectadores esperaria ver. Não preciso nem citar aqui os milhões de casos em que diferentes topografias de respostas foram amplamente criticadas e, embora repercussões polêmicas gerem “likes e compartilhamentos” (estímulo que pode também sinalizar $$$ no ambiente social virtual), os impactos a curto e longo prazo de repercussões como estas de situações ou eventos considerados como “entretenimento” (desempenho X ou Y de um dado participante em interação com outros participantes do programa) podem implicar em diferentes efeitos tanto para quem pratica a ação, como para quem é alvo, como para a grande população que acompanha o programação.

Alguns poderiam questionar a categoria de “jogo” que esse reality show parece ter como referência. Enfatizo a noção de que se trata de um jogo, sobretudo porque é veiculada a ideia de que esse programa é exatamente um jogo, e que os participantes são “jogadores”, e que o valor a ser ganho ao final é o “grande prémio”.  Não apenas isso, há um discurso entre participantes e críticos do programa referindo-se aos comportamentos dos participantes com o uso da palavra “jogo”. Por exemplo: “o jogo do A é muito arriscado… ele não consegue medir as consequências do que tem dito na ultima semana”; ou “o jogo de B é ausente e pouco dinâmico, parece uma planta”. Quer dizer, as pessoas estão sendo classificadas como “corajosas”, “impulsivas”, “inertes” a partir do olhar para o comportamento delas durante o programa.

Assim, jogar nesse reality é muito do que você poderia imaginar em relação à “emissão de comportamentos”. Quando alguém afirma “não gosto de seu jogo“, afirma que não gosta da maneira como pessoa em particular tem se comportado em determinadas circunstâncias dentro do programa. Considerando que poderiamos supor que há uma contingência que lembra as características de um esquema misto em vigor, alguém “joga” (decide, pergunta, escolhe, responde, dança, canta… etc) considerando tudo o que trouxe de aprendizado até aquele momento. Além disso, se entreter pode envolver diferentes aspectos da trama por trás de um reality show (podendo envolver, inclusive, casos com efeitos de problemáticas sociais indesejáveis), o comportamento de “jogar”, nesse caso, pode ser mantido mais pelas características naturais das interações sociais, e menos pelos impactos sociais e dos efeitos de regra do programa.

Por exemplo, falas e atitudes comprometedoras não entrarão em contato com as consequências programadas pelas regras do jogo de forma imediata; muito menos com os efeitos que o ambiente social possa apresentar como consequências, aversivas ou não, para essa topografia de resposta. Desconsiderando o aspecto “sorte” que determinados eventos surgem e imunizam participantes de serem alvo da votação para sair do programa, nem mesmo a permanência no jogo (ou seja, mesmo sendo uma das alternativas da votação semanal e não receber o maior percentual de votos para sair) pode ser destacada como uma consequência importante para o desempenho dos jogadores. Isso se deve ao fato de que, num grupo de três participantes considerados como passíveis de sair (com base na análise espectadores), a pemanência não significa que o “jogo” de um dado participante não esteja também sendo mal classificado pelo público.

Assim, entendo fortemente que o comportamento de jogar no BBB parece ser uma boa analogia de uma exposição à contingência com reforçamento misto: em um dado momento do programa, X padrão pode ser importante; em outro momento do programa, na verdade é o padrão Y; em outro momento, o padrão Z. Não há clareza quando tais momentos (contingências) estão em vigor, na medida em que não há sinalização específica. As pessoas jogam no sentido literal de que “estão interagindo com o ambiente” e podem ter seus comportamentos afetados, mais imediatamente, pelas diversas consequências sociais apresentadas dentro do programa. Esse efeito, embora imediato, pode não ser relevante pensando nos critérios da regra do jogo (o tal do entretenimento). Também podemos falar do efeito tardio e inespecífico pelos resultados das votações, que embora tenha relação com o aspecto do ‘entretenimento’, é pouco claro sob os aspectos que definem o que é ou não entretenimento e, ainda assim, pouco preciso pois alguém pode vencer sem ter necessariamente ser o “ícone” de entretenimento do programa.

Bibliografia

Catania, A. C. (1999). Aprendizagem: Comportamento, linguagem e cognição. Porto Alegre: Artes Médicas.

Cooper, J. O., Heron, T. E., & Heward, W. L. (2007). Applied behavior analysis (2nd ed.). Upper Saddle River, NJ: Pearson. 

Ferster, C. B., & Skinner, B. F. (1957). Schedules of reinforcement. New York: Appleton-Century-Crofts.

Hanley, G. P., Iwata, B. A., & Thompson, R. H. (2001). Reinforcement schedule thinning following treatment with functional communication training. Journal of Applied Behavior Analysis, 34, 17–38.

Skinner, B. F. (1953/2003). Ciência e Comportamento Humano. São Paulo: Martins Fontes.

Escrito por:

Ítalo Teixeira

Bacharel em Filosofia e Psicologia. Mestre em Ciências do Comportamento

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