
O estreito de Drake é um dos trechos marítimos mais perigosos da Terra. Ele compreende uma faixa de 800km que fica entre o extremo sul do Chile e a Antártida. Ali acontece o encontro dos oceanos Atlântico e Pacífico, e esse encontro é, por vezes, muito turbulento.
Lá, as condições meteorológicas são caóticas. O clima muda subitamente. As tempestades frequentes trazem ventos de grande intensidade. As temperaturas são baixas, e chegam a congelar o casco das embarcações e desregular os instrumentos de navegação. As correntes oceânicas têm alta velocidade e formam ondas de mais de 12 metros, o que exige maior destreza dos comandantes das embarcações. A travessia é tão intensa que pode levar até 48 horas para completá-la.
Além disso, a visibilidade é baixa, há nevoeiros, há placas de gelo e icebergs que vem da Antártida, e total ausência de ilhas ou pontos de apoio.
Ou seja, há mar, gelo e imprevisibilidade.
Assim é navegar no Estreito de Drake.
Assim também é atender a cert@s clientes na clínica.
Há clientes que desafiam todas as nossas habilidades, e produzem um ambiente extremamente severo, com condições adversas. Tudo parece ir bem na sessão até que vem um iceberg:
– Eu não vejo sentido nisso…
– Acho que não vai dar certo…
– Você não está entendendo o que eu estou dizendo…
E ainda chega uma onda gigante:
– Vou te trocar pelo ChatGPT…
Ou ainda: vem um silêncio gélido.
Alguns clientes mudam de assunto, assim como o vento muda de direção. Há aqueles que se esquivam, ou são confrontadores e hostis, como as ondas do Drake.
São clientes que evitam, resistem, atacam, se calam, se contradizem, desafiam valores pessoais, questionam a/o terapeuta e o método, invadem limites pessoais. Esse clima inóspito desestabiliza, desorganiza e testa a embarcação do terapeuta.
Uma coisa para se lembrar nos momentos de tempestade é que cada cliente faz o melhor que pode, com os instrumentos que tem. Aquilo que faz durante a sessão é um comportamento que é também emitido em outras circunstâncias da vida. A tempestade e o vento forte que cada cliente sopra durante a sessão aparecem também com outras pessoas.

Capitães experientes das embarcações que cruzam o Drake sabem que não podem controlar o mar. Eles controlam apenas a direção. Eles aprenderam a tolerar a incerteza e o mau tempo e não se perdem diante das ondas e das correntes marítimas.
Os capitães dos navios compreendem sua própria ansiedade no alto-mar, sustentam o curso, e mesmo sem visibilidade, mantém o leme firme na direção apontada para onde estão navegando.
Na imprevisibilidade do oceano, eles confiam na própria bússola.
Na clínica, nossa bússola são os objetivos terapêuticos, traçados em conjunto com essa passageira especial. Com eles, mantemos a rota, mesmo diante da turbulência do mar. Os objetivos terapêuticos nos dão sentido e direção e são referenciais estáveis, para quando a cliente mudar de rumo, for hostil, confrontativa ou evitativa, ou quando as emoções chegarem em ondas fortes.
Se o cliente atacar, e o objetivo for desenvolver confiança, há algo aí importante a ser identificado. Se a cliente ficar em silêncio, isso também quer dizer muita coisa.

Navegar sem uma carta náutica é quase irresponsável. Um bom capitão de navio traz sempre seu mapa a mão. Nele o comandante sabe onde estão os bancos de gelo, de onde vem as correntes submarinas, qual a previsão de tempestades, e o histórico de naufrágios da região.
Para nós, esse mapa é a nossa formulação de caso. Lá identificamos como esse cliente aprendeu a funcionar dessa forma, que estratégias já foram tentadas, qual o padrão comportamental que ele tem, que situações evocam os comportamentos, o que favorece e o que enfraquece comportamento.
Sem a formulação, o confronto da cliente pode ser entendido como um ataque pessoal; com a formulação, o mesmo confronto pode ter uma função de sobrevivência, um padrão comportamental que se repete diante de certas condições.
Assim como os icebergs, os comportamentos da cliente em sessão são apenas a ponta visível; há muito mais submerso para ser desvendado.
Às vezes o encontro de uma terapeuta com seu cliente é uma turbulência de emoções. Terapeutas têm sua história, suas emoções e seus pensamentos, ainda que não se fusionem a eles. E alguns clientes podem desafiar esse momento, com ondas para as quais os terapeutas ainda não tinham preparado o leme.
Se o clima no Drake é dinâmico, a formulação comportamental também é. Precisamos muitas vezes ajustar nosso mapa, acrescentando novas análises, novos episódios e novas estratégias, para navegar no mar bravio.
O estreito de Drake, assim como algumas sessões de terapia, pode ser bem assustador. Ele exige atenção plena, resiliência, habilidade de tolerar o incerto e direção clara.
Se você for enfrentar o mar, tenha seu kit de sobrevivência: uma bússola e um mapa, ou objetivos bem traçados e uma formulação de caso bem definida.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
— Fernando Pessoa
Para saber mais
Gottlieb, L. (2020). Talvez você deva conversar com alguém: uma terapeuta, o terapeuta dela e a vida de todos nós. Vestígio Editora.
Pitanga, A. V; Moura, P.R.; & Vandenberghe, L. (2025). O que aprendi com meus clientes: histórias do consultório contadas por terapeutas. Sinopsys.
A Passagem de Drake é um dos lugares mais extremos do planeta!: https://youtu.be/L0peB4aEsWU?si=1DaL99xCAWnirje9
Drake: O mar mais perigoso do mundo: https://youtu.be/-HJjqeCvifo?si=ZWkTnHMA2FzuKnoa
Como citar este artigo (APA):
Luque, P. (2025, 16 de maio). Mar calmo não faz bom marinheiro. Blog do IBAC. https://ibac.com.br/mar-calmo-nao-faz-bom-marinheiro/