
A solidão, a intimidade e o luto são temas que atravessam qualquer vida humana, mas Fleabag faz isso com uma honestidade incômoda. A série brinca com humor ácido, mas o que sustenta cada piada é uma dor que aparece nos cantos: o olhar que evita, a frase que não termina, o silêncio que pesa mais do que a fala. E isso é por conta de um paradoxo importante: Fleabag tenta se conectar enquanto morre de medo de ser vista. Quando ela faz uma piada, não é só humor, é também esquiva. Quando olha para a câmera, além do recurso narrativo, há um pedido de confirmação. Quase como um “você também viu isso, né?”. No fundo, mostra uma tentativa desesperada de não se sentir sozinha.
As interações de Fleabag são respostas moldadas por consequências repetidas: encontros constrangedores que punem a aproximação, momentos breves de afeto que reforçam a busca, e toda uma história de contingências que ensinaram que vulnerabilidade dói. Ela aprendeu a se proteger se tornando exatamente dessa forma, mesmo que proteção como padrão tenha efeito colateral de solidão.
A solidão não é um estado interno nebuloso, mas algo que se aprende. A pessoa passa a evitar contato porque, no passado, tentar doeu. Quando se esconde, o alívio imediato reforça a fuga e isso tudo vira regra. Em Fleabag, o sarcasmo funciona como reforço negativo clássico: protege por um segundo e cobra caro depois. Quanto mais ela tenta não sentir, mais afunda na sensação de isolamento.
Fleabag não se vê capaz de construir relações boas, e essa baixa expectativa já organiza seu comportamento antes mesmo de qualquer tentativa. Ela entra nas situações sociais esperando falhar e esse esperado funciona como estímulo discriminativo para evitar, controlar, manipular ou simplesmente não aparecer inteira. Assim se forma o ciclo perfeito: não tento porque acho que não consigo; falho porque não tento; e cada falha confirma a história que ela conta sobre si mesma. E aí chegamos ao silêncio. Muita gente trata silêncio como “nada”, mas no consultório ele é dado. O silêncio de Fleabag é comportamento: produz efeito, altera a relação, muda a cena. É um silêncio cheio de medo, saudade, raiva, desejo de ser compreendida. É uma resposta não verbal com função emocional clara.
O ponto aqui é que Fleabag não é sobre caos emocional gratuito. É sobre como aprendemos a sobreviver às nossas histórias usando os recursos que temos: humor, fuga, ironia, fantasia, raiva… E sobre como esses recursos, que um dia funcionaram, acabam nos prendendo quando deixamos de ter outras opções. A boa notícia — e aqui é a parte mais behaviorista e mais humana de todas — é que repertório muda. Comportamento se aprende, logo pode se reaprender. A intimidade não nasce pronta, ela é moldada em microgestos: admitir um incômodo, sustentar o olhar por dois segundos a mais, pedir ajuda antes do desespero, rir de si mesma com gentileza, não com punição.
Fleabag nos lembra que querer se conectar e ter medo disso é humano e cotidiano. Não significa fracasso e sim história, já que o silêncio é informação e solidão é processo. E rir de si mesma pra se acolher é a forma mais simples e mais difícil de começar um novo aprendizado. Não tem iluminação, não tem epifania, não tem transformação mágica. Tem o que sempre teve: um comportamento após o outro. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. A vida acontece nos desvios, nas tentativas, no prato que se lava enquanto os pensamentos correm e no silêncio que continua ensinando, mesmo quando a gente finge que não está ouvindo.
Sugestão de leitura
Linehan, M. M. (1997). Validation and psychotherapy. The dialectics of change. In A. C. Bohart & L. S. Greenberg (Eds.), Empirical studies of humanistic psychotherapies (pp. 275–302). American Psychological Association. (Disponível em https://www.researchgate.net/profile/Marsha-Linehan/publication/232561580_Validation_and_psychotherapy/links/54eba9c70cf2a030519476eb/Validation-and-psychotherapy.pdf)
Skinner, B. F. (1957/1978). O Auditório. Em B. F. Skinner, Comportamento verbal (M. P. S. da Cruz, Trad.; pp. 190–210). Editora Cultrix/EDUSP. .
Como citar (APA):
de Lima, I. (2025, 28 de novembro). Fleabag, solidão e silêncio: uma leitura comportamental. Blog do IBAC. https://ibac.com.br/fleabag-solidao-e-silencio-uma-leitura-comportamental/


