Neste texto quero compartilhar com vocês um pouco da minha experiência no atendimento de adultos e adolescentes dentro do espectro autista enquanto psicoterapeuta que utiliza a Psicoterapia Analítica Funcional, referida a partir daqui como “FAP”, do inglês Functional Analytic Psychotherapy (Kohlenberg & Tsai, 1991/2001). A temática de intervenções psicológicas para pessoas que estão no Espectro Autista tem potencial para render muitos tipos de discussão, por isso vou me ater a um aspecto reduzido: as minhas percepções acerca dos atendimentos que realizei.
Primeiro vou apresentar brevemente quem são as personagens deste texto:
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é uma condição de neurodivergência agrupada dentro de um espectro por se apresentar com características bastante diversas entre os indivíduos diagnosticados. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM 5 (APA, 2014) apresenta, como critérios diagnósticos, aspectos sociais e aspectos individuais. Descreve a presença de “déficits persistentes na comunicação social em múltiplos contextos”, faltas na reciprocidade socioemocional, faltas na comunicação não verbal e dificuldade para desenvolver, manter e compreender relacionamentos sociais. Também são descritos “padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades”, que podem se manifestar enquanto movimentos motores, uso de objetos, fala estereotipada e repetitiva, insistência nas mesmas coisas, adesão inflexível a rotinas ou padrões ritualizados de comportamento verbal ou não verbal, interesses fixos e restritivos, hiper ou hiporreatividades a estímulos sensoriais ou interesse incomum por aspectos sensoriais do ambiente. Estas formas de agir podem estar presentes desde a infância, mas podem também ser escondidas por estratégias aprendidas ao longo da vida e só se tornarem plenamente manifestas quando as demandas sociais excederem os limites da pessoa (APA, 2014).
A FAP, por sua vez, é uma das representantes das terapias contextuais, um conjunto de modelos psicoterapêuticos desenvolvidos a partir do final da década de 1980 com o objetivo de aliar os princípios comportamentais básicos desenvolvidos em laboratório à uma linguagem acessível, vivencial e humana (Vandenberghe, 2017). A FAP utiliza a relação terapêutica para promover mudanças em condicionamentos emocionais e em padrões comportamentais amplos, com o objetivo de tornar o paciente mais hábil em, a partir de seu próprio comportamento, alterar as interações que ele estabelece com os ambientes de sua vida, a fim de ampliar interações que produzem saúde e reduzir interações que produzem adoecimento. Essa prática pode ser aplicada de maneira flexível em diversos tipos de demandas psicológicas, como a terapia de casal, casos de adoecimento mental grave, adolescentes, grupos e minorias sexuais, por exemplo (Kanter, Tsai & Kohlenberg, 2010).
A intervenção psicológica mais frequente para pessoas dentro do espectro autista geralmente é orientado pela Análise do Comportamento Aplicada, popularmente conhecida como ABA, do inglês Applied Behavior Analysis. A FAP é também uma forma de aplicação da Análise do Comportamento (Kohlenberg & Tsai, 1991/2001). Uma diferença importante é que geralmente as terapias da ABA são direcionadas para o público infantil, que é frequentemente não verbal. A FAP é um sistema psicoterapêutico que favorece mudança comportamental por contato direto com as contingências, portanto não necessariamente verbal. No entanto, é fundamentalmente um modelo verbal de psicoterapia, adequado para o atendimento de adultos e adolescentes.
Em minha experiência com pessoas com TEA, acompanho principalmente adultos e, em um número menor, adolescentes. Utilizar a relação terapêutica como ferramenta de intervenção se mostra especialmente útil no desenvolvimento de habilidades interpessoais, autoconhecimento e comportamentos de autogerenciamento emocional. A dificuldade em interagir e participar socialmente é um desafio para muitas pessoas dentro do espectro autista; entretanto, essa demanda psicológica não se restringe a este público.
A qualidade das relações com outras pessoas geralmente exerce um papel importante no estabelecimento e manutenção de diversos tipos de psicopatologias, em pessoas neurotípicas e neuroatípicas. É na relação com outras pessoas que desenvolvemos autoestima, identidade e também vivenciamos a maior parte dos traumas emocionais. Algumas características frequentes do TEA podem tornar as relações sociais mais desafiadoras, como, por exemplo, a dificuldade em expressar emoções e manter contato visual, a baixa tolerância a mudanças ambientais, a hipersensibilidade sonora, tátil e visual, podem ser desafios adicionais na interação com outras pessoas. A falta de suporte social que ofereça compreensão dessa experiência sensorial atípica, dificulta o desenvolvimento do gerenciamento emocional, porque na relação com as outras pessoas nós também aprendemos a compreender, organizar, dar sentido e valor aos sentimentos e percepções.
De maneira ampla, a presença de punições na interação com outras pessoas costuma gerar padrões de ansiedade social, fobia social, medo de intimidade, dificuldades na expressão emocional e na comunicação. Pessoas dentro do espectro autista podem apresentar dificuldades na interação com o mundo desde muito jovens, o que pode favorecer a exclusão social, o bullying e outras formas de punição na interação com outras pessoas.
Tendo em vista que a relação terapêutica é ocasião para o cliente reproduzir padrões de relacionamento que ele costuma vivenciar com outras pessoas de sua vida, a FAP pode colaborar no desenvolvimento de habilidades interpessoais. A formulação de caso permite identificar quais relações produzem saúde e quais produzem adoecimento na interação da pessoa com os contextos em que ela está inserida. A postura terapêutica tende a reforçar padrões amplos de comportamento com o objetivo de promover a saúde do paciente na interação com o mundo, são exemplos: a sensibilidade a si mesmo, a auto validação emocional, a percepção de como a pessoa é afetada e como ela afeta as relações em que está inserida e a verbalização de necessidades. O desenvolvimento destas habilidades costuma favorecer que pessoas neurotípicas e neuroatípicas produzam saúde em suas relações interpessoais.
Outro aspecto que a relação terapêutica orientada pela FAP pode colaborar é no desenvolvimento do autogerenciamento emocional. Na interação com outras pessoas, sentimentos podem se tornar proibidos ou aceitáveis; sensações corporais podem ser consideradas “doença” ou naturalizadas como “parte da experiência humana” a depender do contexto social em que a pessoa está inserida. Isso é válido para pessoas neurotípicas e neuroatípicas. Uma diferença importante é que, no caso de pessoas neuroatípicas, como pessoas com TEA, a experiência sensorial pode ser difícil de ser compreendida por pessoas neurotípicas, favorecendo que a experiência sensorial e emocional de uma pessoa autista seja patologizada, invisibilizada e punida. A tendência é que a própria pessoa desenvolva uma relação conflituosa com sua própria experiência sensorial e emocional.
A relação terapêutica é um contexto social direcionado para produzir saúde e, por isso, busca, como primeiro ato de validação, compreender de maneira empática, enxergar, dar visibilidade, para a experiência sensorial e emocional da pessoa atendida. Pois, a compreensão que recebo do outro, favorece a minha própria autocompreensão (Miranda & Miranda, 1991). A autocompreensão não torna agradável a sensação dolorosa, tampouco faz com que se consiga impedir as emoções, mas permite a organização desta experiência. Identificar que algumas sensações e emoções não podem ser evitadas e que outras podem ser alteradas por meio de ações favorece o desenvolvimento de relações mais saudáveis consigo próprio e com outras pessoas.
Outro aspecto relevante do autogerenciamento é a organização dos espaços e da rotina em que a pessoa está inserida. Perceber o impacto que os acontecimento exercem em você, permite prever suas reações e manejar sua rotina. Crises de hipersensibilidade são comuns para algumas pessoas dentro do espectro autista, o que, geralmente, motiva o afastamento de diversas atividades, podendo favorecer o estabelecimento de um estado depressivo. Aprender a comunicar seus limites e necessidades para as pessoas importantes de sua vida, como familiares, amigos e colegas de trabalho geralmente ajuda na tarefa de organizar a rotina e os ambientes para favorecer a participação.
Por fim, acredito que um tema rico e ainda pouco explorado como esse, não se resume às palavras que escrevi aqui. Pode e deve render mais textos empíricos, relatos de caso e também pesquisas com metodologia científica.
Referências
American Psychiatric Association (APA). (2014). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5. Editora: Artmed, Edição: 5, Local de Publicação: Porto Alegre, Ano de Publicação: 2014.
Kanter, J. W., Tsai, M., & Kohlenberg, R. J. (Eds.). (2010). The practice of functional analytic psychotherapy. Springer Science + Business Media. https://doi.org/10.1007/978-1-4419-5830-3
Kohlenberg, R.J. & Tsai, M. (1991/2001). Psicoterapia Analítica Funcional: Criando Relações Terapêuticas Intensas e Curativas. Santo André: Esetec.
Miranda, C. F., Miranda, M. L. (1991). Construindo a relação de ajuda (7. ed.). Crescer.
Vandenberghe, L. (2017). Três faces da Psicoterapia Analítica Funcional: Uma ponte entre análise do comportamento e terceira onda. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 19(3), 206-219. https://doi.org/10.31505/rbtcc.v19i3.1063