Estratégias clínicas para o enfrentamento de práticas culturais machistas

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O comportamento humano, sob a perspectiva da análise do comportamento, é definido através da multideterminação em seus três níveis de seleção: (1) filogênese, que se refere aos comportamentos selecionados nos ambientes ancestrais ao longo da evolução de uma espécie; (2) ontogênese, que são comportamentos selecionados durante as interações de um organismo com o seu ambiente, ao longo de sua vida; (3) cultural, que diz respeito ao ambiente social em que o indivíduo está inserido e à seleção de práticas culturais ao decorrer da história de uma cultura (Catania, 1998; Farias, Fonseca & Nery, 2018).

O entendimento do terceiro nível cultural, mais do que um agrupamento para constituir uma sociedade (Baum, 1999), provê um estabelecimento de padrões comportamentais. E, apesar de ser favorável ao desenvolvimento civilizatório, também se relacionam e podem produzir sofrimento, estados ansiosos, depressivos e afetar desfavoravelmente a qualidade de vida dos seus integrantes, como é o caso das estruturas e contextos de opressão existentes em relações patriarcais: as práticas culturais machistas.

O machismo pode ser caracterizado como um conjunto de contingências sociais que estabelecem comportamentos e práticas culturais em suas interações desiguais e coercitivas entre os gêneros. Os homens concentram-se nas contingências de distribuição de mais poder e na produção de condições de controle coercitivo para o gênero feminino, o que as coloca em posições de sofrimento, inferioridade e perda de reforçadores sociais e naturais importantes (Pinheiros & Mizael, 2019).

Embora a conceituação sobre práticas culturais machistas seja importante e basilar na formulação e compreensão de um caso clínico, ainda é preciso dispor de ferramentas para oportunizar uma intervenção sensível às questões de gênero para o enfrentamento e a criação de arranjos de contingências que permitam às mulheres terem uma maior qualidade de vida por intermédio da clínica comportamental.

Diante do que foi discutido, apresento a vocês algumas estratégias clínicas que podem nortear e viabilizar uma intervenção pautada na produção de relações igualitárias, como também na diminuição da negligência das condições ambientais que produzem sofrimentos para mulheres na clínica analítico-comportamental.

Validação: Uma das condições que podem ser criadas pelo psicoterapeuta analítico-comportamental é a validação. Em virtude das práticas coercitivas, muitas mulheres são invalidadas na expressão dos seus sentimentos e, comumente, costumam ser punidas ao relatarem ou expressarem emoções (Pinheiros et al., 2019). Dado que é através da validação que as pessoas aprendem a discriminar e a modular as suas emoções, muitas mulheres podem duvidar de suas emoções, como se fossem inadequadas ou exageradas (Abramson, 2014; Jiménez & Varela, 2017, como citado em Pinheiros et al., 2019, p. 202). Além disso, podem também ter mais dificuldade em identificar os seus interesses privados, como também experienciar sentimentos de insegurança que são subprodutos das contingências sócio-verbais invalidantes em que estão inseridas.

Autoconhecimento: Similarmente, outras condições podem ser desenvolvidas na clínica comportamental: o autoconhecimento. Segundo Pinheiros e Mizael (2019), “cabe à terapeuta a habilidade de fazer perguntas que coloquem em evidência as propriedades relevantes daquela situação que podem estar evocando estes sentimentos, e que também favoreça a discriminação dessas relações pela cliente, ou seja, favoreça o autoconhecimento”. Desta forma, possibilitar que mulheres possam discriminar os próprios comportamentos que estão sendo controlados por práticas culturais machistas, a fim de que possam estar capacitadas a construir novos repertórios comportamentais que as coloquem em posição de equidade ao gênero masculino e desenvolvimento da autonomia, bem como refinar respostas de contracontrole para atenuar os efeitos coercitivos do machismo (Brandenburg & Dobrianskyj, 2005).

Psicoeducação: A psicoeducação acerca das variáveis controladoras que se relacionam ao nível de sofrimento e interferem na qualidade de vida também evidencia bons resultados na melhora das relações sociais e na terapia de casal (Mussi & Grossi, 2013). À vista disso, a psicoterapia pode atuar com a descrição de variáveis que não são identificadas facilmente fora do setting terapêutico, devido à dificuldade da cliente em discriminar. Contudo, são condições relevantes para respostas de contracontrole, bem como para o favorecimento da discriminação de situações sob controle de gênero (Pinheiros et al., 2019).

Além do mais, outros contextos que são estabelecidos por meio de agências controladoras podem ser enfraquecidos pela psicoterapia, como é o caso das regras. Segundo Carmo, Alvarenga e Lins (2016), “regras são estímulos discriminativos verbais que descrevem contingências. Elas se constituem como conselhos, ordens, instruções ou quaisquer formulações culturalmente elaboradas acerca de como se comportar em uma dada circunstância”. Dado que parte do repertório comportamental dos seres humanos é adquirido através das regras, é importante avaliar quais estão vigentes e se relacionam ao sofrimento das mulheres.

Em razão de muitas interações desiguais que podem ocorrer, como, por exemplo, a realização das atividades domésticas e cuidados com os filhos, estas acabam desempenhando um tempo considerável e não remunerado na vida da mulher, que aloca tempo e recursos para cumprir o que é esperado do gênero feminino (Pinheiros et al., 2019). Assim, é relevante considerar as contingências sócio-verbais e regras presentes no dia a dia da mulher, que modelam classes de respostas alinhadas e consistentes com as práticas culturais machistas. E, apesar de normatizadas, essas condições que se estendem ao longo do tempo podem contribuir para uma desigualdade acentuada e permanente entre os gêneros (Ruiz, 2003, como citado em Pinheiros et al., 2019).

Também, ao definir um caminho mais favorável para a psicoterapia com o gênero feminino, é preciso estar acordado sobre o que a cliente elenca como mais adequado, visando a evitação de conduções enviesadas que possam ser delimitadas e conduzidas pelo terapeuta. Do mesmo modo, para Pinheiros e Mizael (2019), “a elucidação de valores pessoais é essencial para direcionar muitos dos comportamentos da cliente e da terapeuta em sessão, mas deve ser conduzida com cuidado nesse contexto onde as demandas sociais são muito fortes e se misturam com os interesses pessoais.” Além disso, a operacionalização dos eventos reforçadores poderá contribuir para uma clarificação e o estabelecimento de contingências valorosas na psicoterapia, evitando os vieses do psicoterapeuta.

Desta forma, assegurando que enquanto terapeutas possamos utilizar a tecnologia comportamental para evocar/eliciar respostas e sentimentos frutos de novas consequências reforçadoras. Em que as fontes das preocupações de clientes mulheres possam abrir espaço para escolhas conscientes e satisfatórias.

Referências Bibliográficas:

Baum, W. M. (1999). Compreender o behaviorismo: comportamento, cultura e evolução. Porto Alegre: Artmed.

Carmo, P. H. B., Alvarenga, P., & Lins, T. C. S. (2016). Crenças de mães de diferentes níveis socioeconômicos sobre punição física e privação de privilégios. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 16, 911-929.

Catania, A. C. (1999). Aprendizagem: comportamento, linguagem e cognição. Porto Alegre: Artmed.

Farias, A. K. C. R., Nery, L. B., & Fonseca, F. N. (2018). Teoria e formulação de casos em análise comportamental clínica. Porto Alegre: Artmed.

Pinheiros, R., & Mizael T. (2019). Debates sobre feminismo e Análise do Comportamento. (1ª ed.). Fortaleza: Imagine Publicações.

Como citar este artigo (APA):

Nascimento, L. S. (2024). Estratégias clínicas para o enfrentamento de práticas culturais machistas. Blog do IBAC. https://ibac.com.br/estrategias-clinicas-para-o-enfrentamento-de-praticas-culturais-machistas/

Escrito por:

Luana Nascimento

Graduada em Psicologia (FAT); Pós-graduanda em Análise Comportamental Clínica (IBAC); Formação em Análise do Comportamento Aplicada (FAT); Formanda em Sexualidade Clínica (CRESCER); e Integrou a participação na Revista Poliglosa sobre práticas culturais feministas (Nuremberg, Alemanha).

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