Recentemente, chegou aos cinemas a continuação do filme Divertidamente. Na parte 2, Riley passa agora a enfrentar os desafios da puberdade e da adolescência e pode-se aproveitar o filme para exercitar a aplicação de alguns dos conceitos da Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT). Se você ainda não assistiu ao filme, fica o alerta de que o texto contém spoilers!
Logo de início, a Alegria apresenta às demais emoções uma engenhoca desenvolvida por ela que é capaz de jogar memórias que trazem sentimentos ruins no fundo da mente, onde Riley não consegue acessá-las. Esta engenhoca é, claramente, a esquiva experiencial, que segundo a ACT, consiste na tentativa de modificar ou suprimir a experiência privada da emoção (Assaz, Kovac, Oshiro e Meyer, 2018). Os personagens do filme começam então a selecionar aquelas lembranças que deveriam ser esquecidas, como a falta cometida durante um jogo de hockey, que deixa Riley decepcionada com sua própria atitude, ou situações embaraçosas que ela viveu.
Embora possa funcionar a curto prazo, a esquiva experiencial traz prejuízos a longo prazo. A rigidez comportamental e a diminuição do contato com consequências reforçadoras positivas são alguns deles (Hayes, Strrosahl e Wilson, 2021). No filme, é possível observar como a esquiva experiencial contribui para um self conceitualizado, um dos processos de inflexibilidade psicológica descritos pela ACT.
O self conceitualizado consiste no controle verbal excessivo por descrições sobre si mesmo. A fusão com esse tipo de conteúdo contribui também para a rigidez comportamental (Hayes, Strrosahl e Wilson, 2021). Quando os divertidamentes de Riley selecionam apenas boas lembranças para compor a sua noção de self, regras como “eu sou uma boa amiga” e “eu sou uma pessoa legal” passam a exercer controle sobre o seu comportamento.
O filme gira em torno da noção de que o senso de si, composto por essas lembranças e regras sobre si, guiam as ações e sentimentos de Riley. Nesse sentido, pode-se compreender que o senso de si funciona como o self conceitualizado da ACT. Quando a pessoa se funde com os conceitos sobre si, situações inconsistentes com estas regras, podem evocar esquivas experiencias na tentativa de proteger este conteúdo. Isso é observado quando Riley sente-se triste com as amigas por não terem contado que elas iriam para outra escola o que seria incompatível com o conceito “eu sou uma boa amiga”, o que leva a esquiva experiencial desses sentimentos e a esquiva das próprias amigas.
Até o momento do fim de semana do hockey, o self conceitualizado e as esquivas experiencias de Riley não lhe trazem problemas. No entanto, a adolescência e a puberdade trazem contingências mais complexas e contextos que demandam novos comportamentos de Riley. Sem as amigas na mesma escola, a garota se vê sozinha e em uma escola nova que não conhece ninguém. Por isso, o fim de semana de imersão no Hockey, que era para diversão com as amigas se transforma em uma despedida e uma oportunidade para se integrar na nova escola. Para uma garota de 13 anos, é um desafio conciliar antigas amizades com as novas. Os comportamentos de brincadeiras com as amigas que até então traziam apenas reforçadores, trazem consequências aversivas, como a represália da Técnica e a decepção das jogadoras mais velhas do time. As meninas mais velhas fornecem várias pistas de que Riley está sendo avaliada e que talvez não seja aceita por elas como amiga e nem pela técnica como jogadora do time.
O contexto que demanda repertórios comportamentais que Riley ainda não tem e a sinalização de perda de reforçadores e estimulação aversiva faz aparecer uma nova emoção, a Ansiedade. A partir desse ponto do filme, a Ansiedade toma conta de Riley, o que leva a eliminação de outras emoções e ao processo de fusão cognitiva. Segundo Saban (2015), a fusão cognitiva ocorre quando se considera pensamentos como se fossem fatos, aumentando o controle verbal do comportamento. Nesse ponto, Riley funde-se com conteúdos como “se eu não entrar para o time, não terei amigos”, “as pessoas irão gostar de mim apenas se eu for aceita no time de hockey”, “se eu falar que gosto de coisas infantis, não serei aceita nesse grupo”. Além disso, Riley imagina vários cenários hipotéticos no futuro de como pode acabar sem amigos ou fora do time, tomando-os como se fossem verdades.
A fusão cognitiva com esses conteúdos favorece o processo de esquiva experiencial. Para fugir dos sentimentos de insegurança, solidão e ansiedade, Riley passa a acordar cedo para treinar, afasta-se das amigas que não estão tão comprometidas com o jogo, não deixa outras pessoas jogarem durante a partida e comete uma falta grave. Como também, quando está com as meninas mais velhas, ela fala o que pensa que as meninas querem ouvir, ao invés de tatear as próprias experiências e emoções e, no momento de mais apreensão do filme, ela invade a sala da Técnica para olhar suas anotações.
Esses comportamentos decorrentes da fusão cognitiva demonstram como Riley está agindo desconectada com os seus valores. Para a ACT, valores são descrições verbais de reforçadores que trazem satisfação pessoal e um sentimento de realização. A identificação de valores facilita a aceitação dos sentimentos categorizados como ruins (Assaz et al., 2018). No filme, é possível perceber que amizade e hockey são valores importantes para Riley. No entanto, a esquiva experiencial da ansiedade gerada pela situação de seleção do time, da tristeza da distância das amigas e o medo da solidão na nova escola, aliados a fusão cognitiva, acaba, por deixá-la mais distantes das amigas tão queridas e da aceitação no novo time.
A tentativa da Ansiedade de conduzir Riley a atingir os seus objetivos de entrar para o time e fazer novas amizades teve um resultado desastroso. Ao invés de Riley agir de acordo com os seus valores e aceitar os sentimentos de insegurança e ansiedade, as ações de inflexibilidade psicológica levam a um novo self conceitualizado, agora não positivo como o anterior, mas sim “eu não sou boa o bastante” e que geram um intenso sofrimento. No clímax do filme, Riley está frustrada com a anotação que leu no caderno da técnica, bem como percebe que nada vai bem no campo das amizades o que desencadeia uma crise de ansiedade.
No meio da crise, Riley tenta se fundir novamente ao self conceitualizado positivo, mas já não é mais possível, tendo em vista suas ações desconectadas de valores ao longo do fim de semana. Enquanto isso, a engenhoca da Alegria quebra e todas as lembranças ruins invadem o senso de si de Riley. Embora essas lembranças sejam tão temidas pela Alegria, o retorno delas ao local da formação do senso de si, é que resolve o dilema enfrentado. Este retorno, pode ser compreendido pela ACT, não de forma literal como emoções sendo coisas que habitam diferentes lugares na mente, mas como o processo verbal da aceitação, que segundo Assaz et al. (2018) é a diminuição da fuga e esquiva e a substituição por respostas de aproximação.
Durante o processo de aceitação, Riley compreende que ela não é uma emoção ruim, assim como não é uma emoção boa. Ela não é uma lembrança ruim, mas também não é uma lembrança boa. Ela não é a atitude valorosa, tampouco as ações desconectadas de valores. Riley então é o local onde tudo isso acontece, sem se restringir a identificação de um conteúdo ou outro. Os dilemas se encerram então, quando há demonstração da flexibilidade psicológica e a noção de um self como um processo, que abarca diversas experiências públicas e privadas, a partir de um self em perspectiva (Saban, 2015).
Para a ACT, então, o senso de si construído a partir de diferentes lembranças não é o que determina a saúde psicológica de Riley, tendo em vista que fusões com conteúdos positivos também são sinais de inflexibilidade psicológica. A aceitação das experiências privadas desagradáveis, ações de compromisso relacionadas a valores e a desfusão dos cenários hipotéticos é o que faz Riley ser menos controlada pela esquiva da ansiedade e agir para ter uma vida mais satisfatória. Isso é visto quando a partir da resolução desse conflito, Riley tem ações de compromisso, como pedir desculpas as amigas, como também consegue lidar com aceitação no momento que antecede o resultado da seleção para o time e não se deixa fusionar aos cenários hipotéticos criados pela ansiedade.
Referências
Assaz, D. A., Kovac, R., Oshiro, C. K. B. & Meyer, S. B. (2018). A terapia de aceitação e compromisso. Em: Antunez, A. E. A.,; Safra, G. (orgs) Psicologia Clínica da Graduação à Pós-Graduação. Rio de Janeiro: Atheneu.
Hayes, S. C., Strosahl K. D. e Wilson K. G. (2021) Terapia de aceitação e compromisso : o processo e a prática da mudança consciente. Porto Alegre: Artmed.
Saban, M. T. (2015). O Que é Terapia de Aceitação e Compromisso? Em: Lucena-Santos, P., Pinto-Gouveia, J. & Oliveira, M. da S.. Terapias Comportamentais de Terceira Geração, guia para profissionais. Nova Hamburgo: Sinopsys editora.
Escrito por:
Psicóloga clínica, Mestre em Ciências do Comportamento pela Universidade de Brasília (UnB). Docente de Psicologia na graduação e na Formação em Análise Comportamental Clínica do IBAC.