O presente texto é produto de um dos encontros do Grupo de Estudos Avançado (GEA/IBAC) “Construindo intervenções significativas: a jornada da psicoterapia infantojuvenil com Goldiamond”, escrito, sob minha revisão e orientação, pelas alunas Maiane de Oliveira, Tais Bento, Tatiane Franco e Twany Martins.
Goldiamond (1974/2002) destaca o crescente questionamento sobre os direitos constitucionais e humanos de indivíduos institucionalizados no contexto intelectual e social da época. Ele levanta preocupações éticas sobre o modelo institucional de controle comportamental, apontando possíveis violações dos direitos dos pacientes à liberdade de consentir ou discordar dos tratamentos. Goldiamond argumenta que, em ambientes de controle total, os indivíduos podem ser forçados a aceitar valores institucionais e procedimentos sem um verdadeiro consentimento, comprometendo assim sua autonomia e dignidade. Apesar da evolução nos modelos de psicoterapia analítico-comportamentais, é equivocado afirmar que infelizmente não há resquícios desse tipo de modelo no atendimento psicoterapêutico de crianças.
Ao analisarmos o processo psicoterapêutico infantil de forma cronológica, podemos considerar como ponto de partida o momento em que um dos responsáveis pela criança entra em contato com o psicoterapeuta ou com a instituição psicológica para buscar auxílio relacionado a comportamentos da criança que afetam negativamente a dinâmica familiar (Brandão & Melo, 2020). Frequentemente, as crianças são encaminhadas para acompanhamento psicológico por médicos e instituições educacionais que apontam comportamentos-problema e possíveis prejuízos no desenvolvimento. Assim, é comum que crianças cheguem ao consultório psicológico sem compreender o motivo de estarem ali, sem que haja uma conversa familiar informando sobre a necessidade desse tipo de acompanhamento. Isso leva à reflexão sobre o papel do psicólogo diante desse contexto em relação à autonomia e às demandas clínicas da criança no processo psicoterapêutico.
O atendimento infantojuvenil deve ser orientado pelo melhor interesse da criança, promovendo sua autonomia e participação ativa no processo psicoterapêutico. O psicoterapeuta deve constantemente se perguntar: “Estou promovendo a autonomia da criança/adolescente?” e “Estou ouvindo sua voz e permitindo que participe ativamente do processo psicoterapêutico?”. Essa reflexão contínua assegura que o atendimento não apenas respeite os direitos da criança, mas também evite práticas que possam comprometer sua autonomia e desenvolvimento pessoal.
Demandas entre família e criança
No atendimento clínico, o assentimento e o consentimento devem equilibrar as necessidades da família com as da criança. Embora sejam os familiares e responsáveis que forneçam o consentimento formal, é crucial respeitar a autonomia da criança e facilitar seu desenvolvimento envolvendo-a no processo psicoterapêutico de maneira lúdica. Utilizando recursos como desenhos, livros, histórias, brincadeiras simbólicas com bonecos ou construção de personagens, os profissionais podem acessar a compreensão da criança sobre a psicoterapia, psicoeducá-la sobre seu funcionamento, estabelecer um contrato psicoterapêutico e obter seu assentimento. Isso implica em também construir um vínculo saudável com a família e psicoeducá-la sobre o funcionamento da psicoterapia infantil, sendo sensível às necessidades e possibilidades das crianças em se engajarem no plano psicoterapêutico.
Para tanto, planos psicoterapêuticos podem ser elaborados em conjunto com os responsáveis, enfatizando a importância de sua participação. Goldiamond (1974/2002, p. 35) destaca:
“os pais mantêm um contato muito maior com a criança do que o terapeuta, que esse contato se estenderá além das sessões de terapia e, portanto, é mais parcimonioso treiná-los para serem os agentes de mudança para seus filhos (…) Portanto, cada pai deve ser treinado para ser o agente de mudança do seu próprio comportamento”.
Assim, torna-se essencial desenvolver planos psicoterapêuticos colaborativos, assegurando que as vozes das crianças e de suas famílias sejam ouvidas e consideradas. O estabelecimento do vínculo é gradual e varia em cada criança e família. É importante que o profissional converse a “língua” de cada membro familiar, estando atento ao vocabulário, tom de voz e intervenções para que a interação entre o profissional e o paciente não tenha qualquer caráter aversivo (Linares et al., 2023).
Demandas entre o psicoterapeuta, a família e a criança
Muitas vezes, os cuidadores principais da criança podem ver a psicoterapia como semelhante a um hospital, onde o psicoterapeuta, como um médico, “cura” os problemas e o sofrimento do paciente. O psicoterapeuta deve empatizar com as queixas e o sofrimento da família, que frequentemente traz um senso de urgência para mudanças rápidas. É essencial, portanto, que o psicoterapeuta considere o impacto desse contexto em seus próprios comportamentos, garantindo que o processo seja orientado para alcançar os objetivos psicoterapêuticos e não apenas uma reação às suas experiências emocionais. Isso inclui evitar a autocobrança por resultados imediatos para sanar mais as necessidades da família do que as da criança, além de não cair na armadilha de tentar ser o “bom terapeuta” aos olhos dos outros, sendo coerente com seu objetivo profissional.
Goldiamond (1974/2002) ressalta a relevância de uma abordagem construcionista para lidar com essas pressões, desenvolvendo habilidades psicoterapêuticas necessárias, como estabelecer limites claros quanto ao papel de cada participante no caso clínico; discordar ou negar pedidos que contradigam o plano psicoterapêutico e as demandas clínicas; cobrar pelas sessões realizadas com a criança, outros familiares e a escola; e expressar o que precisa ser dito para a evolução do caso, mesmo que isso cause desconforto aos participantes. Além disso, o psicoterapeuta também atua eticamente ao comprometer-se com uma rotina que respeite seu próprio bem-estar e desenvolvimento profissional, reconhecendo o número máximo de pacientes por semana e investindo em supervisão clínica.
Conclui-se que a condução ética do psicoterapeuta infantojuvenil deve sempre considerar os direitos das crianças, promovendo sua autonomia e participação ativa no processo psicoterapêutico. A abordagem construcionista proposta por Goldiamond (1974/2002) destaca a importância de equilibrar as necessidades da família com as demandas individuais da criança, evitando práticas coercitivas e respeitando o consentimento e o assentimento. Além disso, o psicoterapeuta deve desenvolver habilidades para lidar com as pressões familiares sem comprometer os objetivos terapêuticos, estabelecendo limites claros e garantindo que todas as vozes envolvidas sejam ouvidas. Esse compromisso ético e colaborativo assegura um ambiente psicoterapêutico que favorece o desenvolvimento saudável e a dignidade das crianças e suas famílias.
Referências
Linares, I. M. P.; Brandão, L. C. & Rossi, A. (2023). Estabelecimento de vínculo terapêutico no atendimento analítico comportamental infantil. Em: Santos, A. V. & Pitanga, A. V. (Orgs.). Terapia Analítico-Comportamental Infantil: práticas criativas do terapeuta no atendimento com crianças (Pp. 137-148). Juruá.
Brandão, L. C. & Melo, M. H. da S. (2020) O Terapeuta Analítico-comportamental da infância. Em: Rossi, A. S. U., Linares, I. M. P., & Brandão, L. C. (Org.). Terapia Analítico-Comportamental Infantil (1ª ed.). São Paulo, Brasil: Centro Paradigma Ciências do Comportamento.
Goldiamond, I. (2002). Toward a constructional approach to social problems: ethical and constitutional issues raised by applied behavior analysis. Behaviorism, 2(1), 1-84. DOI 10.1007/s40614-017-0117-2. (Original publication in 1974).
Como citar este artigo (APA)
Santos, A. V., Oliveira, M. de, Bento, T., Franco, T., & Martins, T. (2024, 21 de junho). A condução ética do psicoterapeuta infantojuvenil: reflexões e práticas. Blog do IBAC. https://ibac.com.br/a-conducao-etica-do-psicoterapeuta-infantojuvenil-reflexoes-e-praticas/