Durante a minha jornada de atuação profissional no Transtorno do Espectro Autista (TEA), houve um episódio que me fez atentar para a bússola comercial que poderia nortear a Análise do Comportamento Aplicada ao TEA, nos dias atuais. Esta, correndo o risco de ser alocada, conduzida e manipulada, não no sentido experimental ou no seu desenvolvimento, mas para um propósito comercial. Atrelada ao rótulo científico nas propagandas de outdoor de algumas clínicas especializadas em autismo; no entanto, distante do cerne da ciência comportamental em sua aplicação.
Para uma melhor contextualização aos caros leitores, certo dia, eu recebi uma ligação de uma clínica especializada em crianças atípicas:
“Luana, eu preciso de algo inovador para a minha clínica! Um protocolo de atendimento que seja único da minha empresa, exclusivo! Você poderia produzir isso o mais rápido possível?” – disse uma das diretoras.
De imediato, eu indaguei o que a profissional entendia como “protocolo exclusivo”. Afinal, uma boa descrição dos eventos ambientais nos permite diminuir a chance de inferência e nos baseamos em dados reais frente às condições em que estamos inseridos. Para a minha surpresa, o protocolo era um grande marketing para a cidade, para a clínica e para a margem lucrativa ao final do mês. “Que pais não gostariam de ter o seu filho em um espaço revolucionário?!” – foi uma das frases que ouvi naquela fatídica ligação.
Desde aquela experiência, eu comecei a me atentar a um movimento que, além de destoar do cerne da ciência comportamental e da ética profissional, também caminha para uma distorção da filosofia, metodologia e aplicação da Análise do Comportamento pelos seguintes aspectos:
A. Pesquisas estudam os procedimentos para mudanças comportamentais.
Para avaliar a efetividade de uma intervenção sistematizada, repetida e tecnológica, em que há uma descrição precisa de procedimentos derivados dos conceitos e da Análise Experimental do Comportamento, é indispensável que as condições sejam controladas, minimamente, por profissionais previamente treinados. Não devem ser as condições econômicas, mas científicas, metodológicas e filosóficas que norteiam e constituem a observação, mensuração e a análise das possibilidades de registros e avaliações comportamentais. Invariavelmente, de forma individualizada.
B. Apesar de protocolos serem uma boa fonte de registros que permitem medições precisas e confiáveis, em uma intervenção em ABA (Análise do Comportamento Aplicada) é essencial a manutenção dos pressupostos da ciência comportamental.
Ao elencarmos um plano de intervenção, temos que levar em consideração que atuamos com um Transtorno do Desenvolvimento. À vista disso, será necessário avaliar se o repertório comportamental da criança está coerente com o esperado para a sua idade cronológica. Ao identificar os déficits, delineamos os comportamentos-alvo da intervenção (Lousy, 2019). Como comumente há um déficit em pré-requisitos comportamentais para a inclusão da criança em uma comunidade sócio-verbal, a qual possa prover reforçadores a mesma, temos protocolos de mensuração e intervenção para estas habilidades (atenção, imitação, linguagem receptiva e expressiva etc.) que são extremamente importantes para o desenvolvimento infantil, bem como a autonomia da criança.
Entretanto, apesar de termos modelos padronizados para mensurar comportamento, eles não são fundamentados através de uma evidência anedótica do profissional: “Isso funcionou para mim”. Mas de manuais construídos, direcionados e orientados por pesquisadores em sua acurada pesquisa. E com um adendo, caros leitores – não são produzidos para as clínicas terem a sua exclusividade no mercado. Afinal, destoaria do papel da ciência: a produção e difusão do conhecimento.
Além disso, as intervenções comportamentais voltadas para o tratamento do autismo são e devem ser direcionadas para as áreas do desenvolvimento que a criança apresenta déficits comportamentais, como também sobre as variáveis controladoras dos comportamentos que se apresentam em excesso, o que pode gerar prejuízos na aprendizagem da criança. Isto é, atesta que o analista deverá estar alinhado e comprometido com a ciência comportamental, uma vez que será indispensável para articular as relações de possibilidades de intervenção do profissional (Tourinho, 1999).
C. A ótica além das “falhas do desenvolvimento infantil”.
Por fim, uma afirmativa que considero indispensável nesta escrita: um mero protocolo de registo sem a base de uma intervenção idiossincrática, que leva em consideração os antecedentes e consequentes na identificação das variáveis controladoras do comportamento, além do seu repertório de base. Assim como uma avaliação funcional com o escopo de elencar e monitorar a evolução da intervenção e contribuir para mensurar o grau de eficácia da mesma. Estes dificilmente garantiriam o delineamento de uma intervenção apropriada e diferenciada para cada criança.
Assim, apesar de registrarmos respostas-alvo em protocolos de registros sistemáticos e repetidos, de termos uma boa fonte de manuais, produções e intervenções pautadas na ciência comportamental, ainda é necessário confrontarmos a capitalização da Análise do Comportamento, do TEA. Em que os limites éticos e científicos podem ser facilmente rompidos. Enquanto houver o aproveitamento do rótulo de ABA para a criação de um “método revolucionário”, na verdade, só haverá descrédito da ciência comportamental. Afinal, resultados não podem e nem são produzidos nesses moldes à sombra da lucratividade.
Referências:
Baer, D. M., Wolf, M. M., & Risley, T. R. (1968). Some current dimensions of applied behavior analysis. Journal of Applied Behavior Analysis, 1(1), 91-97. 10.1901/jaba.1968.1-91
Fernandes, F. D. & Amato, C. A. (2013). Análise de Comportamento Aplicada e Distúrbios do Espectro do Autismo: revisão de literatura. CoDAS, 25(3), 289-296. Disponível em: https://www.scielo.br/j/codas/a/vgGhzWvhgWXJXp5PrvBK9Nr/?format=pdf&lang=pt
Tourinho, E. Z. (1999). Estudos conceituais na análise do comportamento. Temas em Psicologia, 7(3), 213-222. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-389X1999000300003&lng=pt
Vermes, J. S. (2012). Clínica analítico-comportamental infantil: a estrutura. In: Borges, Nicodemos Batista; Cassas, Fernando Albregard. Clínica analítico-comportamental: aspectos teóricos e práticos. Porto Alegre: Artmed.