A Prática Baseada em Evidências (PBE) em Psicologia é a integração de três pilares: a melhor evidência disponível com a expertise clínica no contexto das características, cultura e preferências do paciente (APA, 2006). A análise funcional (ou análise de contingências) é uma ferramenta utilizada pela/o analista do comportamento para tomada de decisões clínicas que está totalmente alinhada com essa visão. Tem ampla validação científica, com base em experimentos com delineamento de sujeito único, desde as primeiras pesquisas e desenvolvimento de conceitos como reforço, punição, discriminação e generalização por B. F. Skinner. Nesse processo, a experiência do psicólogo é de extrema relevância na elaboração e reformulação de análises funcionais de seus cliente na prática. Além desses dois fatores, a análise funcional está no cerne da individualização do tratamento pois permite compreender as causas dos comportamentos de cada cliente, considerando sua filogenia, ontogenia e cultura de maneira transdiagnóstica.
No que se refere à filogenia, em uma prática baseada em evidências o psicólogo deve se atentar, por exemplo, a como alterações hormonais, doenças crônicas, uso de medicamentos e outras condições podem afetar as interações entre o cliente e o ambiente em que vive, o que também influenciará a escolha do tratamento. Se o cliente já realiza algum tratamento específico com outros profissionais da saúde, como no caso de uma doença crônica, é essencial que o psicólogo se informe sobre esse tratamento, seus efeitos colaterais e, se possível, converse com os outros profissionais que o acompanham. Com essas informações, o psicólogo poderá buscar evidências relacionadas àquela condição que auxiliem por exemplo em uma psicoeducação, bem como na compreensão de fatores que levam o cliente a aderir ou não a um tratamento, possibilitando assim análises de como essa adesão está alinhada a seus valores.
Quanto à ontogenia e cultura, têm-se discutido cada vez mais a importância de analisar criticamente as evidências atualmente disponíveis. Variáveis como gênero, raça e renda devem ser consideradas ao adaptar uma intervenção, bem como a história individual de exposição a partir dessas variáveis. Nesse sentido, análises funcionais moleculares e molares são excelentes ferramentas para nortear esse olhar.
Uma análise funcional operante molecular identifica as relações entre estímulos antecedentes, o comportamento (resposta) e suas consequências:
Antecedente: Comportamento -> Consequência
Essas relações são funcionais no sentido de que antecedentes e consequências alteram a probabilidade da resposta ocorrer, não se tratando de uma relação linear de causa e efeito. Assim, as respostas operantes estão sob controle de variáveis múltiplas, produzindo diversas consequências ao mesmo tempo que podem controlar a resposta de formas diferentes a depender da ocasião. Ao entender como eventos ambientais externos e internos influenciam o comportamento de cada indivíduo, os psicólogos podem propor intervenções que modifiquem diretamente essas relações, tanto no próprio contexto terapêutico quanto fora dele.
Imagine uma pessoa que, ao receber um convite para uma festa (antecedente), responde declinando (comportamento), evitando possíveis críticas e constrangimentos que poderiam acontecer durante a festa (consequência reforçadora negativa). Nessa situação, a pessoa sente ansiedade ao receber o convite e alívio ao se esquivar da situação potencialmente aversiva (respondentes). A compreensão das relações entre esses eventos permite prever comportamentos futuros e desenvolver estratégias específicas para reduzir comportamentos de fuga-esquiva, bem como para aumentar comportamentos de enfrentamento de forma gradual e controlada.
Cada indivíduo tem uma história única de aprendizagem, experiências e contextos que influenciam seus comportamentos atuais. Ao aprofundarmos o exemplo acima um pouco mais, poderíamos identificar que, além de evitar críticas e constrangimentos na festa, os amigos dessa pessoa insistem no convite, dizendo o quanto ela é querida e como eles gostariam que ela fosse. A curto prazo, essa consequência poderia aumentar a probabilidade da resposta de declinar ocorrer, considerando o quanto essa atenção e os elogios podem ser reforçadores para ela naquele contexto. A longo prazo, porém, os convites dos amigos podem diminuir de frequência, uma vez que são negados constantemente, e essa pessoa poderia se isolar cada vez mais. Nesse sentido, uma possível intervenção teria como objetivo auxiliar a pessoa a enfrentar o medo das críticas, tanto pela exposição quanto pelo engajamento em outras respostas que produzam aqueles reforçadores (atenção).
A análise funcional ajuda a adaptar intervenções às necessidades específicas da pessoa, em vez de aplicar soluções generalizadas. Isso aumenta a efetividade e a relevância do tratamento para cada cliente. Ainda utilizando como referência o exemplo supracitado, observe que a resposta de recusar convites poderia ser justamente um objetivo terapêutico para uma pessoa que tem dificuldade em dizer “não”, indo a festas que não gostaria. Em outro exemplo, dois clientes com queixas de procrastinação poderiam apresentar um mesmo comportamento com funções diferentes: um pode estar evitando tarefas aversivas, enquanto outro busca reforço imediato de atividades prazerosas.
Quando o psicólogo observa diversos comportamentos com funções similares, é possível expandir para uma análise funcional molar, identificando padrões ao longo do tempo. Esse tipo de análise descreve aspectos históricos que levaram ao estabelecimento daquele padrão e contextos atuais que o mantêm. Pensando em uma prática baseada em evidências, essa perspectiva molar é fundamental para que as variáveis culturais e individuais não sejam consideradas de forma superficial, compreendendo tanto o histórico do cliente tanto a maneira como os padrões se repetem no momento atual, visto que eles podem mudar de topografia à medida que envelhecemos e passamos por outras experiências.
Dessa forma, intervenções baseadas em análises funcionais tendem a produzir mudanças duradouras porque tratam das causas subjacentes do comportamento, e não apenas uma lista de sintomas. Isso é crucial para evitar recaídas ou dependência de estratégias superficiais. Assim, trabalhar na modificação de contingências que reforçam comportamentos indesejáveis pode levar a mudanças mais robustas do que simplesmente suprimir tais comportamentos sem abordar suas origens.
Outro ponto referente à análise funcional, porém mais especificamente relacionado ao comportamento do terapeuta, é como esse tipo de análise consiste em uma ocasião que por si só favorece a individualização do tratamento. Ao provocar o psicólogo a investigar variáveis históricas, antecedentes e consequentes do comportamento do cliente, este necessita orientar seu olhar e suas perguntas para aqueles três níveis de seleção, devendo se adaptar às mudanças na vida do cliente que poderão repercutir no processo terapêutico. Além disso, por se tratarem de relações funcionais e não de causa e efeito, o estabelecimento de análises funcionais leva à constante elaboração e teste de hipóteses, que tendem a promover maior expertise do profissional – o segundo pilar da PBE mencionada no início.
Por fim, vale ressaltar que, além de possibilitar intervenções individualizadas, a análise funcional também auxilia o cliente a desenvolver autoconhecimento, aprendendo a reconhecer seus próprios padrões comportamentais, em quais contextos acontecem (o termo “gatilho” tem sido muito usado popularmente) e as consequências que produzem. Reconhecer as variáveis das quais seu próprio comportamento é função pode facilitar o auto-gerenciamento do comportamento (autocontrole) de forma independente no futuro. Como costumamos dizer, “o objetivo de todo terapeuta é que o cliente deixe de precisar do terapeuta em um futuro não tão distante” (mas seguimos disponíveis sempre que necessário).
Conclusão
A análise funcional do comportamento é uma ferramenta indispensável para a individualização porque fornece uma compreensão detalhada e científica do comportamento humano em seu contexto. Essa abordagem permite que intervenções sejam desenvolvidas de maneira específica, eficaz e sustentável, em total alinhamento com os princípios da Prática Baseada em Evidências. Por meio dela, os psicólogos conseguem atender às necessidades únicas de cada cliente e promover mudanças reais e duradouras.
Sugestões de leitura
American Psychological Association, Presidential Task Force on Evidence-Based Practice. (2006). Evidence-based practice in psychology. American Psychologist, 61(4), 271–285. https://doi.org/10.1037/0003-066X.61.4.271
Banaco, R. A.; Zamignani, D. R. & Meyer, S. B. (2014). Função do Comportamento e do DSM: Terapeutas Analítico-comportamentais Discutem a Psicopatologia. Em: Tourinho, E. Z. & Luna, S. V. (Org.). Análise do Comportamento Investigações Históricas, Conceituais e Aplicadas (pp. 175-191). São Paulo: Roca.
Marçal, J. V. S. (2005). Refazendo a história de vida: quando as contingências passadas sinalizam a forma de intervenção clínica atual. Em Guilhardi, H. J. & Aguirre, N. C. (Orgs.). Sobre Comportamento e Cognição: vol. 15 (p. 258-273).
Nery, L. B., & Fonseca, F. N. (2018). Análises funcionais moleculares e molares: um passo a passo. In A. K. C. R. de-Farias, F. N. Fonseca, & L. B. Nery (Orgs.), Teoria e formulação de casos em análise comportamental clínica (pp. 22-54). Porto Alegre: Artmed.
Nobre, M. R. C., Bernardo, W. M., & Jatene, F. B. (2003). A prática clínica baseada em evidências. Parte I: questões clínicas bem construídas. Revista da Associação Médica Brasileira, 49(4), 445-449. https://doi.org/10.1590/S0104-42302003000400039
Como citar este artigo (APA)
Cambraia, R, & Hosken, A. F. (2024, 6 de dezembro). A Análise Funcional: Uma ferramenta essencial na individualização da Psicoterapia. Blog do IBAC. https://ibac.com.br/a-analise-funcional-uma-ferramenta-essencial-na-individualizacao-da-psicoterapia/
Este artigo foi escrito em co-autoria com
Ana Flávia Hosken
Psicóloga clínica (CRP 01/22586) Pós-graduada em Análise Comportamental Clínica pelo IBAC