Utilizando o filme Barbie em uma Terapia Feminista

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Já aviso dem e antemão que esse é um texto que contém spoilers! O filme Barbie, lançado em 2023, apresenta uma visão do como seria um mundo dominado por mulheres em uma dimensão denominada “Barbieland“. Dentro dessa perspectiva, as Barbies vivem em um país cor-de-rosa, ocupam espaços sociais normalmente ocupados por homens no mundo real, enquanto os Kens passam o dia sem fazer nada a espera da(s) Barbie(s), além de disputar a atenção destas entre outros Kens.

O filme é baseado na história da Barbie protótipo, ou seja, uma Barbie com características físicas e comportamentais idênticas ao que é considerado ideal para o sexo feminino (leia-se: feminilidade) – ela é branca, alta, possui cabelos longos e loiros, é magra, não possui estrias ou celulites, está sempre de salto, bem vestida e arrumada, é sorridente, é bem-humorada, se mostra disposta a cuidar do outro e se apresenta feliz o tempo todo.

Ao se notar menos feminina – com celulites e pensamentos sobre a própria existência (morte), a Barbie protótipo busca ajuda e é orientada a ir no mundo real encontrar a menina (ou mulher) que está conectada à ela, pois essas sensações humanas estão sendo transferidas do mundo real para a Barbie protótipo. Foi orientado que ao consertar a tristeza dessa menina ou mulher, a Barbie poderá exterminar todos esses problemas (celulites e sentimentos de tristeza) e o mundo dela voltará ao normal.

Porém no mundo real, a Barbie protótipo encontra o mundo dela totalmente ao inverso, onde homens dominam mulheres, homens ocupam todos os cargos importantes, inclusive a Barbie sofre abuso sexual, os homens tentam controlá-la colocando ela de volta na caixa e isso a motiva a retornar para o seu mundo que, para a surpresa da Barbie, também foi dominado pelos Kens (quando a Barbie foi para o mundo real, o Ken também foi – sem ter sido convidado. No mundo real, o Ken aprendeu sobre o patriarcado e levou o ideal patriarcal para a Barbieland e transformou o local em Kendom).

Apesar da tentativa em mostrar um mundo onde as mulheres são dominantes, o filme falha em colocar a feminilidade como intrínseco ao que é ser mulher (Beauvoir, 1949/1970). Independente do mundo em questão: Barbieland ou mundo real, a mulher é retratada em ambos a partir do viés da feminilidade. Apesar de ocupar cargos, serem independentes, não priorizarem homens, ainda assim, as mulheres do filme continuam reféns da socialização feminina e isso fica aparente na importância dada as roupas, ao cor-de-rosa, a maquiagem e ao extremo cuidado com os sentimentos alheios (principalmente dos homens – a Barbie cuidou do Ken no fim do filme para que ele buscasse o próprio sentido da vida).

Apesar desses problemas que não são coerentes com uma perspectiva feminista que considera que a socialização feminina é um dos grandes pilares do sofrimento das mulheres (Fideles & Vandenberghe, 2014), o filme pode ser um aliado na psicoterapia para ajudar mulheres que ainda não compreendem as raízes do seu próprio sofrimento a enxergarem:

  • O que é o patriarcado (de forma muito resumida e sucinta);
  • O porquê que um mundo patriarcal leva mulheres ao sofrimento;
  • O quão caricato é um mundo onde homens dominam e mulheres são servas destes;
  • O quanto mulheres precisam dar conta de tudo e ainda estarem sempre bonitas, serem boas esposas, boas pessoas e boas mães (a mulher conectada à Barbie expõe isso).

Em contrapartida, ao se apresentar a partir da feminilidade, o filme pode reforçar estereótipos de gênero, tais como:

  • Exclusão de mulheres grávidas (em momentos distintos é questionado o porquê a Barbie grávida está ali, pois ela tinha sido descontinuada – além do mais, a Barbie grávida está sempre em um canteiro, tal como as mães do mundo real sendo excluídas de todos os espaços possíveis);
  • Heterossexualidade compulsória, ou seja, todas as Barbies se relacionam amorosamente com Kens e no filme aparece apenas um Ken que aparentemente é gay, porém ele é o amigo gay de alguma Barbie – é esse o papel dele;
  • Realce de comportamentos de cuidado para com outras pessoas (mesmo após o Ken roubar a Barbieland, a Barbie ainda se preocupa e cuida dos sentimentos dele);
  • Divisão de gostos e preferências por gênero, isto é, o filme retrata e faz uma divisão do que é referente ao sexo masculino e o que é referente ao sexo feminino (música pop, cor-de-rosa, maquiagem, salto alto, entre outros apetrechos são para mulheres, enquanto rock, cavalos, luta, bebidas alcoólicas, entre outras coisas são do sexo masculino) – isso dificulta que as pessoas assistam o filme e se sintam representadas quando não cumprem o estereótipo destinado ao seu sexo.

O filme retrata uma realidade paralela onde mulheres são dominantes, porém, mesmo assim, o filme ainda se mantém dentro dos moldes machistas. Apesar de ainda apresentar componentes muito machistas, na época em que foi lançado, o filme causou incômodo em muitos homens. Mesmo que de forma leve e ainda muito estereotipada, muitos homens parecem ter se sentido ameaçados com um possível despertar das mulheres diante das violências cometidas por eles.

Por fim, trazendo uma opinião como terapeuta feminista, o filme pode ser utilizado no consultório em uma prática feminista, mas sempre de forma atenta, pois a formulação de casos é idiossincrática e só através de uma análise funcional bem construída que se consegue avaliar o custo/benefício desse material em determinado caso, uma vez que a narrativa do material pode ajudar algumas mulheres a enxergarem as violências sofridas, porém em outros casos o filme pode reforçar estereótipos de gênero.

Para saber mais:

Beauvoir, S. (1949/1970). O segundo sexo: Fatos e mitos. Difusão Europeia do Livro.

Fideles, M. N. D., & Vandenberghe, L. (2014). Psicoterapia Analítica Funcional Feminista: Possibilidades de um Encontro. Psicologia: Teoria e Prática16(3), 18-29. http://dx.doi.org/10.15348/1980-6906/psicologia.v16n3p18-29.

Nicolodi, L. G., & Hunziker, M. H. L. (2021). O Patriarcado sob a Ótica Analítico-Comportamental: Considerações Iniciais. Revista Brasileira de Análise do Comportamento7(2), 164-175. http://dx.doi.org/10.18542/rebac.v17i2.11012

QG Feminista. O que é o Patriarcadohttps://qgfeminista.org/o-que-e-o-patriarcado/

Escrito por:

Ana Clara Almeida Silva

Psicóloga, Doutoranda e Docente do curso de Pós-Graduação em Análise Comportamental Clínica e no curso de Formação em FAP do IBAC.

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