“The Last of Us”: Variação, Seleção e a Clínica Comportamental

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SD: livre de spoiler 😉

Recentemente ocorreu o lançamento de uma série baseada na história de um jogo eletrônico cujo enredo gira em torno de um intrigante cenário “pós-apocalíptico”. Quem já jogou ou está acompanhando a serie pode identificar com facilidade as características ambientais que são comuns de ficções nesse gênero: em The Last of Us (TLOU) há ênfase em um processo de infecção fúngica que se alastra provocando um estado de pandemia em um curto espaço de tempo. O fungo Cordyceps, do gênero ascomiceto ophiocordyceps, que até então é conhecido por apenas colonizar insetos (e.g., formigas), passa a colonizar também organismos humanos, levando-os à morte e ao ‘ressurgimento’ como mutações orgânicas parecidas com “zumbis”. Longe de ousar uma explicação sobre esse suposto fenômeno, meu objetivo aqui é pensar um pouco sobre o efeito sistemático, sobretudo em comportamentos, de contextos onde ocorrem mudanças ambientais tão drásticas quanto essa.

Foto de Erik Karits em Unsplash

Há pouco mais de três anos vivenciamos um estado de calamidade em função da pandemia de COVID-19 e, com ela, experimentou-se uma série de mudanças sobre o modo de interação social, de cuidado com a saúde, de exposição a estímulos aversivos tais como os efeitos da doença, de estabelecimento de extinção para um grande grupo de respostas, dentre outros aspectos. Um acontecimento longe de ser fictício, que trouxe à tona uma série de mudanças nas contingências em vigor em diferentes contextos (que, na época, considerava-se como “estado de normalidade”). Assim, talvez concordemos que a observação dos efeitos generalizados de situações de pandemia pode, grosso modo, exigir-nos a compreensão de que mudanças nas contingências, sobretudo mudanças drásticas como essas em destaque aqui, implicam em mudanças comportamentais em processos que aparentam ocorrer de forma igualmente drástica.

Até aqui, nada de novo, pois entendemos que comportamentos são selecionados pelas contingências. Assim como em qualquer outro contexto, as variações comportamentais são praticamente induzidas pela exposição às novas contingências (e.g., extinção). Tais alterações das contingências podem implicar em mudanças em diferentes classes de respostas, de tal forma que, como observado na série, as relações sociais possam apresentar tantas mudanças que se torna possível suspeitar que há o desenvolvimento análogo ao que seria uma espécie de “nova ordem pública”. Em TLOU, por exemplo, humanos são pressionados a viver em um mudo com escassez de comida, de água, de moradia segura e de ausência de uma rede de saúde, com ausência também de leis e de regras sociais bem estabelecidas e, como se não bastasse, com a exposição constante a um aversivo de alta magnitude condensado na figura dos “infectados” (indivíduos que passaram pelo processo de mutação fúngica e que se comportam como “zumbis”), que apresentam um enorme risco à vida.

É interessante notar que o título dessa série, traduzindo do inglês, significa “o(s) último(s) de nós”, uma possível referência ao processo de sobrevivência. Mais interessante ainda é o fato de que a ênfase não retrata apenas o processo de “extermínio”, mas a variação e seleção de padrões de respostas, na medida em que se demonstra as características atuais da população e das relações humano-ambientais após mais de 30 anos de uma pandemia ainda sem solução. Em outras palavras, há um destaque nos processos de variação e de seleção de comportamentos que caracterizam as “adaptações” aos novos contextos (ou ao “novo normal”). Haja vista que, se o ambiente muda com tamanha ênfase, ‘velhos’ padrões comportamentais podem não mais produzir as mesmas consequências que outrora o mantinham em alta frequência. Estabelece-se, portanto, uma nova contingência.

Quando estudamos o modelo de seleção por consequências – o ‘carro chefe’ do que seria uma noção de causalidade dentro da perspectiva behaviorista radical -, imaginamos uma inspiração na teoria darwiniana de seleção das espécies. A partir dessa teoria, entendemos que a sobrevivência das espécies é um processo que envolve a variação e a seleção de características orgânicas em resposta à diversidade dos contextos ambientais. Com isso, é bem possível pensarmos no estabelecimento e na manutenção de padrões comportamentais como um análogo da “sobrevivência das espécies”. De tal forma que é razoável pensar que as pessoas fazem o que fazem e dizem o que dizem como resultante dos processos de variação e seleção de comportamentos (Baum, 2006, Chiesa, 1992).

Tanto para a observação de operantes, quanto para a execução de análise funcional e manejo de contingências, a “variação e seleção” de comportamentos é uma ‘dupla dinâmica’ inegavelmente envolvida nos processos comportamentais (Skinner, 1981). O comportamento de lavar as mãos, seja ele considerado compulsivo ou não, resulta de uma história de variação e de seleção de respostas emitidas nos diferentes contextos relevantes da história de um indivíduo. Se ocorre em alta frequência hoje, não podemos deixa de sugerir que existem aspectos da contingência atual que “fortalecem” esse padrão (ou seja, que o reforçam, positiva ou negativamente). Tais aspectos da contingência são análogos às condições favoráveis do ambiente que garantem a sobrevivência da espécie: aqui, a permanência de determinadas características da contingência podem ser suficientes para a manutenção de um dado padrão comportamental.

Com isso, podemos supor que o grupo de operantes emitidos na história presente de um dado indivíduo trata-se de um grupo de comportamentos ‘sobreviventes’. A peculiaridade das histórias de vidas acolhidas e analisadas em uma conduta clínica é inevitavelmente uma resultante da variação e da seleção, ou da seleção do comportamento pelas contingências expostas ao longo da experiência relatada por um indivíduo. Se me permitem uma liberdade poética, compreender tudo que foi indicado até aqui talvez nos seja útil para lembrar que, além de não ser o nosso papel (como psicólogos e analistas do comportamento) atribuir valor sobre o resultado de processos comportamentais diversos, todas as histórias individuais podem exibir as características do “estado de calamidade” que lhes são particulares e, portanto, individualmente definidas.

Não é nosso papel atribuir valor ao resultante de processos comportamentais no mesmo sentido em que não há finalidade ou objetivo implícito e predeterminado na “sobrevivência das espécies”. Os organismos sobrevivem em uma condição ambiental, não por intencionalidade, muito menos por determinação mística (no sentido de uma suposta ‘força interior’) (Baum, 2006). O mesmo vale dizer sobre a “sobrevivência” de padrões comportamentais, que se mantém hoje e ocorrem em alta frequência em função das condições ambientais. Sobre isso, basta lembrar que a autoconsciência tanto não é um prerrequisito para que mudanças comportamentais ocorram, como também não é um prerrequisito para que um organismo se comporte.

O “estado de calamidade” (um análogo da história individual) é definido individualmente pelo simples fato de planejarmos, como analistas do comportamento, uma avaliação que se pauta em uma perspectiva de caso único. Além disso, as proporções tomadas pelos efeitos dos infortúnios do estado de calamidade individual devem ser consideradas dentro do contexto de cada história, na experiência de cada pessoa. Assim, acho que podemos concordar que todos vivem seus ‘estados de calamidade individual’, mas esse fato não implica que os vivenciamos da mesma forma, ou que ‘passamos pelos mesmos caminhos para chegar até o estado atual, tal como se apresenta no presente’. Imaginar isso seria semelhante a afirmar que os protagonistas de “The Last of Us” e de “The Walking Dead” (uma outra série que aborda um enredo na temática de sobrevivência), por estarem ambos em contextos sociais igualmente adversos, exibissem problemáticas e pontos de vista semelhantes sobre a vida, com iguais emoções e sentimentos frente as suas vivências, compreensão individual e coletiva equiparáveis, dentre outros aspectos.

Até mesmo considerando um mesmo contexto: seria como suspeitar que os diferentes padrões de comportamento do repertório de diferentes indivíduos tenham todos sido produtos de histórias idênticas de seleção e de variação. Obviamente, aspectos macro podem nos conduzir para análises de contingências macro, com efeito de consequências sócio-culturais em larga escala, e que podem sugerir aspectos comuns nos processos de aprendizagem observados entre indivíduos. Porém, sem entrar nesse campo, insisto na permanência de uma análise intrassujeito e na compreensão metafórica aqui proposta. Se são comportamentos que exibem (ou não) alguma consequência avaliada como desfavorável a curto, médio ou longo prazo, a ocorrência desses comportamentos, hoje, apenas sugere que são respostas que sobreviveram às adiversidades da exposição à contingências.

Bibliografia

Baum, W. M. (2006). Compreender o behaviorismo: ciência, comportamento e cultura. (2ª ed.). Porto Alegre: Artmed. (Trabalho original publicado em 2005).

Chiesa, M. (1992). Radical Behaviorism and Scientific Frameworks: from mechanistic to relational accounts. American Psychologist, 11 , p. 1287-1299.

Skinner, B.F. (1981). Selection by Consequences. Science, New Series, 213(4507), 501-504.

Escrito por:

Ítalo Teixeira

Bacharel em Filosofia e Psicologia. Mestre em Ciências do Comportamento

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