Maternidade e paternidade real e sem julgamentos

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A parentalidade não é fácil: muitas vezes é preciso estar emocionalmente disponível quando se está exausto e estressado, conciliar as múltiplas tarefas domésticas e profissionais, administrar suas próprias emoções e pensamentos em situações difíceis, perdoar o filho ou dizer-lhe um “não”, entre outros pontos. Mas o que mobiliza pais seguirem nessa jornada, enfrentando esses momentos difíceis?

Vamos iniciar a discussão partindo das questões relacionadas às emoções envolvidas no papel de ser mãe ou pai. Quando se observa a criança com comportamentos que fogem às expectativas criadas, diversas emoções – intensas e difíceis de serem sentidas – podem naturalmente “bater à porta”. Dentre elas, podem ser citadas:

  • Impotência – Não saber mais o que fazer para lidar efetivamente com diversas situações,
  • Insuficiência – Não conseguir alcançar as expectativas que pais criam para eles mesmos enquanto pais,
  • Culpa – Ao lidar com as atitudes da criança de modo que não concorda, como gritar e/ou bater
  • Impaciência – Quando os comportamentos ocorrem aquém das expectativas.

Frente a tais emoções e buscando a felicidade plena e o alívio do sofrimento, pais podem acabar colocando em prática soluções imediatistas e pouco efetivas a médio e longo prazo como forma de cessar tais sensações. Nesse movimento, acidentalmente, a solução não se encerra no problema de fato, isto é, não são consideradas às necessidades de aprendizagem emocional ou social da criança para aquela situação configurada como problema. Por exemplo, a criança recebe castigos e retaliações de seus pais ao se comportar inadequadamente e, ainda que os pais não concordem com essa estratégia de educação, assim o fazem para aplacar suas próprias emoções. O foco acaba sendo eles próprios e não a criança e a educação envolvida no processo.

Os pensamentos dos pais – de como se vêem ou vivenciam essa situação – também podem exercer influência no processo de interação com seus filhos. A partir de suas histórias de vida, pais podem apresentar regras para si mesmos, do tipo: “se apresento ‘bons’ comportamentos enquanto pai/mãe, a criança apresentará também ‘bons’ comportamentos”. Assim, se a criança se comporta inadequadamente (o que naturalmente acontece, pois a criança é humana, passível de erros e de aprendizagens, como os adultos), pais podem entender que “não sou boa mãe ou bom pai”. Essa relação pode estar entrelaçada com outra possível regra, também criada para si mesmo, “uma pessoa bem-sucedida é aquela cujo filho não se comporta inadequadamente”. Quando a criança apresenta algum comportamento-problema, logo, pode surgir o pensamento “sou um fracasso/sou uma má pessoa”. Nessas circunstâncias, é mais provável que pais busquem reduzir de forma imediata estes pensamentos desconfortáveis, ainda que o meio para tal não seja (de forma cônscia ou não) o mais adequado – efetivo a longo prazo e saudável para o desenvolvimento da criança. Note que essas equivalências são “psicológicas”, e não lógicas.

Há algumas formas dos pais evitarem sentir emoções ou pensamentos desagradáveis, diante de uma circunstância que a criança esteja apresentando comportamentos-problema, por exemplo, a desobediência:

  • “Deixar para lá” a demanda/solicitação feita (ou seja, nem sempre as regras ou instruções às crianças valerem),
  • Não supervisionar se a demanda foi seguida,
  • Apresentar práticas educativas punitivas (com o raciocínio que uma prática coercitiva de maior intensidade garantirá uma criança obediente) etc.

Percebam que o objetivo dessas ações com a criança parece ser com a função de que ela seja obediente. Contudo, parte do que pode estar motivando esse movimento é a questão da aversividade condicionada presente no comportamento da criança (ou seja, “eu sou um mau pai” e/ou “não posso tolerar que eu seja uma pessoa falha”). Nesse quadro, a interação com a criança pode por si mesma ser intensamente desagradável ou hostil, aumentando as chances dos pais fugirem ou evitarem o contato com ela em situações especialmente estressantes.

Paradoxalmente, as tentativas de fugir ou evitar conteúdos internos e dolorosos, muitas vezes, resultam em seu fortalecimento: pais podem se tornar insensíveis ao ambiente presente e às necessidades da criança para aquela situação que ela não está lidando bem. Como um ciclo, os episódios de comportamentos indesejáveis da criança continuam a ocorrer e outras formas de evitar os pensamentos ou emoções são encontrados. Se pais se afastam da criança quando esta se comporta inadequadamente, em que momento ou com quem a criança irá aprender formas alternativas de lidar com a situação em questão?

Por lógica, pais não podem ser considerados fracassados como pessoa quando seus filhos se comportam mal. Por mais desconfortáveis, difíceis e dolorosos que possam ser as emoções ou pensamentos, eles não dizem respeito sobre a capacidade alguém de ser mãe ou pai. Na verdade, dizem respeito que a pessoa é humana, está viva e tem um coração, ou seja, que se importa consigo mesmo e com seus filhos. Pais podem se permitir sentirem e abrirem espaço a essas emoções e pensamentos, sem cercar-se de julgamentos. Quanto mais os pais aprendem a se relacionar melhor com os seus próprios pensamentos e as emoções (que comumente buscam ser evitados), maior será o impacto positivo para a criança e para a interação deles com a criança.

Os filósofos gregos possuíam clareza que o propósito da vida não era ser feliz, e sim a busca pela eudaimonia, que pode ser traduzido como “realização”. A diferença entre os dois é que o termo grego se refere à permissão de sentir sensações dolorosas e difíceis, inevitáveis em qualquer jornada da vida. No trajeto da parentalidade, é impossível sentir a felicidade o tempo todo, uma vez que há diversos tipos de desafios e preocupações envolvidos em cuidar de uma criança: saber lidar efetivamente com birras, desobediências, notas escolares baixas e garantir suas necessidades e direitos básicos.

Ainda que possa haver uma grande vontade de lutar contra essas emoções e pensamentos, pais podem redirecionar suas energias para o que realmente importa no processo de educação infantil. Se faz importante ampliar o contato com o momento presente e o comprometimento com ações que levem a parentalidade ser orientada por valores e com sentido, que se distingue do aliciamento (seguir as regras para aprovação social). Para isso, lhe convido às seguintes reflexões:

– No papel de filho, como é (era) seu relacionamento com sua mãe e seu pai? Para você, quais momentos foram marcantes, positivos e negativos?

– Atualmente, você se sente mais próximo de sua mãe ou de seu pai? Por quê?

– Quando você se sentia chateado quando criança, o que você fazia?

– Há outras situações que lhe geram emoções parecidas quando você se sente desafiado no processo da educação infantil? Quais são esses contextos? Como você reage?

– Houve muitas mudanças no seu relacionamento com seus pais depois da infância? Como é seu relacionamento com eles (se vivos), enquanto adulto?

– O que as emoções nas situações desafiantes com a criança revelam sobre o que é importante para você?

– Que tipo de mãe ou pai você gostaria de ser? Para você, quais características são importantes que uma mãe ou um pai devam ter?

– O que você acha que a criança espera de você?

– O que você espera da criança, considerando sua história de vida e seu repertório atual?

– Sabendo o que é importante para você no papel de mãe ou pai, o que está disposto a fazer, experimentar e sentir para honrar o que lhe importa?

– Em momentos doces de sua vida diária com a criança, o que você está fazendo? Por que é importante fazer isso? Esses momentos de doçura são em meio a tristeza ou estresse?

– Imagine que você está no futuro, 20 ou 30 anos depois. Os desafios que você atualmente está lidando como pai ou mãe, há muito tempo estão resolvidos. Olhando para trás, a partir dessa perspectiva futura, o que você gostaria que tenha sido nestes dias, meses e anos com seu filho?

– Imagine seu filho de 20 ou 30 anos no futuro e que ele esteja vivendo sua vida cotidiana. O que você deseja para seu filho? Quais características você espera ter fomentado em seu filho? Olhe novamente para trás, a partir dessa perspectiva futura. O que você pode fazer hoje em direção a essa visão de futuro?

– Imagine que seu filho, novamente 20 ou 30 anos no futuro, esteja refletindo sobre sua infância. Ele está falando com um amigo sobre esse assunto. Ao fazer essa reflexão, seu filho começa a falar sobre você como pai ou mãe. O que você espera ouvir seu filho dizer? Provavelmente você quer que seu filho diga que você é um bom pai ou uma boa mãe, mas procure ser específico. Em vez de se deter no que você pensa que seu filho provavelmente vai dizer, procure concentrar-se no que você espera ouvir seu filho dizer. Imagine seu filho completando estas sentenças: “serei sempre grato aos meus pais por …” “tenho sorte de ter os pais que tive, porque…” e “algo que eu valorizo em meus pais é…”.

– Em 10 anos, olhando para o passado, o que eu teria querido que tivesse sido este momento com meu filho? O que estou fazendo para controlar minhas emoções ou o que estou fazendo para estar lá para meus filhos?

A partir do conhecimento da eudaimonia é possível realinhar as expectativas e cobranças que pais fazem sobre eles mesmos e de seus filhos. Ao se comprometer com a jornada da parentalidade e compreender sua complexidade, no fim do dia (ou da vida), pais podem vir a alcançar em cheio a eudaimonia, sentindo que essa tarefa desempenhada por eles valeu a pena. Nessa premissa grega, há possibilidade de se sentir realizado(a) e, simultaneamente, por exemplo, irritado(a). O que é valoroso na vida ou na parentalidade, nos fará sentir dor de alguma forma. Mesmo assim, vale a pena continuar seguindo na direção do que me importa no papel de mãe ou pai.

Bibliografia:

Whittingham, K., & Coyne, L. (2019). Acceptance and commitment therapy: the clinician’s guide for supporting parents. Academic Press.

Coyne, L. W., & Wilson, K. G. (2004). The role of cognitive fusion in impaired parenting: an RFT analysis. International Journal of Psychology and Psychological Therapy4(3), 469-486. http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=56040302

https://www.theschooloflife.com/saopaulo/home/blog/uma-palavra-melhor-do-que-felicidade-eudaimonia/

Escrito por:

Amanda Viana dos Santos

Psicóloga pela PUC Goiás e mestra e doutoranda em Análise do Comportamento pela UEL. Docente no curso de Formação em Terapia Analítico-Comportamental Infantil do IBAC. Gerencia o Instagram @guiapraticodospequenos

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