Feminismo: valor de vida ou regra de conduta?

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O tema feminismo tem sido abordado constantemente dentro de diversos espaços frequentados por psicólogas/os e analistas do comportamento de forma geral. A primeira publicação juntando os conceitos feminismo e análise do comportamento se deu em 1995 através do trabalho publicado por Maria R. Ruiz intitulado “B. F. Skinner’s radical behaviorism: Historical misconstructions and grounds for feminist reconstructions” (O Behaviorismo Radical de B. F. Skinner: Más interpretações históricas e fundamentos para reconstruções feministas, tradução livre). Através de Ruiz (1995; 1998) foi possível iniciar uma discussão sobre as divergências e principalmente sobre as convergências entre a Análise do Comportamento, o Behaviorismo Radical e o movimento feminista (Couto & Dittrich, 2017).

Tanto o feminismo quanto a filosofia behaviorista radical consideram as questões sociais como primordiais ao se pensar em saúde psicológica. Ambos compreendem que qualquer ação humana faz parte de um contexto, negando a existência inata da masculinidade e da feminilidade. Desta forma, as duas teorias concordam que a sociedade pode ser transformada através de intervenções culturais, como também discutem o excesso de síndromes e biologicismos utilizados para explicar o comportamento considerado socialmente como desviante em mulheres (por exemplo: mulheres que se comportam de forma “masculina”) (Couto & Dittrich, 2017).

Sendo tanto o feminismo quanto o behaviorismo radical contextuais, abre-se a possibilidade para realizar discussões com base na filosofia do contextualismo funcional, na noção de valores e na diferença entre valores e comportamento governado por regras. Explico esses aqui:

  • O contextualismo funcional é a filosofia que dá suporte para grande parte das terapias comportamentais contextuais ou terapias de terceira geração. O papel do contexto (antecedentes, consequências, operações estabelecedoras) é primordial para o entendimento das ações humanas. Não existe um julgamento topográfico de certo/errado dos comportamentos, uma vez que se determinada classe de respostas (diferentes topografias, em diferentes contextos que possuem função semelhante) está em alta frequência no repertório do sujeito é porque aqueles comportamentos estão funcionando nesses mesmos contextos (isso não quer dizer que é saudável para aquela pessoa) (Hayes, Barnes-Holmes & Wilson, 2012);

  • A noção de valores para análise do comportamento refere-se a comportamentos que podem (e devem) ser analisados funcionalmente. A expressão de valores se dá geralmente de forma verbal e geralmente essa verbalização está sob controle discriminativo dos possíveis efeitos reforçadores positivos e/ou negativos da audiência do falante. Nesse sentido, nem sempre o que o indivíduo diz valorizar é de fato o que o mesmo valoriza, já que esta pessoa pode estar sob controle da aprovação social ou de uma possível esquiva de críticas ou julgamentos (Carneiro & Santos, 2021);

  • Já as regras são compreendidas como estímulos discriminativos verbais, onde existe o falante – aquele que emite a regra, e o ouvinte – aquela pessoa que seguirá ou não a regra. Regras descrevem contingências de ‘seentão…’; ou seja, se você agir de determinada maneira, então você sofrerá determinada(s) consequência(s). O comportamento governado por regras pode substituir a aprendizagem direta na contingência (através da modelagem), uma vez que a pessoa que segue a regra não necessita sofrer as consequências para aprender a se comportar de acordo com a contingência descrita (Matos, 2001).

Dessa forma, a discussão proposta aqui é: o seu feminismo tem funcionado na sua vida e também no seu consultório como uma regra que descreve como a/o cliente deve se comportar ou o seu feminismo tem sido trabalhado como um valor de vida na perspectiva daquela/daquele cliente? Ao falar sobre questões do mundo feminino, você, enquanto terapeuta, tem auxiliado na construção de um caminho valoroso para sua/seu cliente ou tem emitido regras sobre como essas pessoas devem se comportar?

Imagem: https://istoe.com.br/conheca-a-historia-do-feminismo-no-brasil/

Para trabalhar em prol dos valores, terapeutas feministas geralmente buscam:

  • Uma relação terapêutica igualitária, onde a mudança acontece de forma bidirecional;
  • Validar a perspectiva de vida da cliente;
  • Compreender os comportamentos (inclusive psicopatológicos) através de um viés contextual e, principalmente;
  • Empoderar e estimular que a cliente busque por uma emancipação coletiva de todas as mulheres (Fideles & Vandenberghe, 2014).

Empoderar é um verbo transitivo direto que está relacionado à capacidade de uma pessoa em tomar decisões sobre si mesma a partir da sua perspectiva contextual, como também em reconhecer as opressões sofridas para lutar contra as mesmas.

Para promover o empoderamento e estimular a emancipação coletiva, a/o terapeuta precisa estar disposta/o a desenvolver repertórios de análise do contexto social opressor junto com suas clientes ao invés de fornecer regras de conduta. Dizer que uma mulher feminista se comporta de determinada forma é um jeito de dar regra sem desenvolver a habilidade da análise contextual, podendo gerar e reforçar a insensibilidade daquela mulher diante das contingências naturais, favorecendo que esta cliente se torne dependente dessas regras e vivencie outras violências em função da dificuldade em percebê-las (Matos, 2001).

Uma mulher que está em busca de desenvolver práticas feministas na psicoterapia e que se tornou dependente das regras da/o terapeuta, não conseguirá desenvolver repertórios comportamentais de empoderamento e menos ainda de emancipação coletiva. Ao seguir regras, a cliente terá dificuldade em se adaptar quando as contingências mudarem (e elas irão mudar!), pois não estará sob controle das consequências naturais do seu comportamento, e sim de como uma mulher feminista se comporta de acordo com sua/seu terapeuta (Matos, 2001).

Já quando a/o terapeuta trabalha com sua cliente o desenvolvimento de análise do contexto opressor, a mesma apresentará maior probabilidade de tomar decisões por conta própria, bem como a talvez buscar por ações que estimulem a emancipação coletiva de todas as mulheres. Para tanto, a/o terapeuta precisa se despir da sua hierarquia na relação para, junto com sua cliente, construir repertórios relacionados aos valores que ambas/os querem cultivar (Assaz et al., 2016).

Para uma melhor compreensão acerca dos valores, parece também ser necessário compreender a relação simbólica proposta pela teoria das molduras relacionais (RFT) entre os diferentes estímulos discriminativos verbais (Assaz et al., 2016). Segue um exemplo de tais relações utilizando alguns conceitos dentro do movimento feminista: o feminismo é (moldura de coordenação) um movimento político, social e acadêmico que é diferente (moldura de distinção) do conceito de femismo (forma de preconceito ideológico de que mulheres são superiores aos homens), sendo que o femismo é o oposto (moldura de oposição) do machismo (forma de preconceito ideológico de que homens são superiores às mulheres) – desta forma, é possível compreender, através de uma derivação de tais relações, que o feminismo não é sinônimo do femismo e nem o oposto do machismo, e sim uma luta que surge em decorrência (moldura de causalidade) do machismo.

Apesar da derivação das relações, o que se entende por ações feministas irá depender de uma análise contextual, isto é, em um determinado contexto uma topografia pode ser considerada feminista, porém em outro contexto a mesma topografia pode ser compreendida como machista. Um exemplo possível de ser analisado funcionalmente e topograficamente é a crítica realizada por mulheres direcionada à outras mulheres. Entre mulheres, principalmente feministas, é comum que as suas próprias ações sejam colocadas em discussão e criticadas dentro do próprio grupo para uma busca de melhorias relacionadas à emancipação feminina (atitude feminista). Porém, a mesma ação de crítica realizada por mulheres sobre outras mulheres em um grupo de homens (contexto diferente) pode favorecer a manutenção de posturas e ações machistas nos mesmos.

Sendo assim, utilizando o exemplo fictício do parágrafo anterior, caso a/o terapeuta venha a fornecer a regra “se uma mulher critica outra mulher, então ela é machista”, a cliente poderá se tornar insensível ao contexto, ignorando todas as ações de todas as mulheres, inclusive violências cometidas por mulheres contra essa mesma cliente, tudo isso em prol de uma regra de conduta dada por uma pessoa importante na vida da cliente: sua/seu terapeuta. Desta forma, o feminismo deixa de ser trabalhado em psicoterapia como um valor para se tornar uma regra na vida daquela mulher. Além da compreensão das relações funcionais verbais, a cliente precisa aprender que valores são comportamentos que estão sujeitos a uma análise funcional e que não existe uma topografia geral do que é ser uma mulher feminista no mundo.

Por fim, a reflexão que esse texto busca propor é:

A terapia feminista que você tem proposto está mais voltada para regras de conduta ou para o desenvolvimento de repertórios mais valorosos?

Referências:

Assaz, D. A.; Vartanian, J. F.; Aranha, A. S.; Oshiro, C. K. B.; Meyer, S. B. (2016). Valores sob a Perspectiva Analítico-Comportamental: da Teoria à Prática Clínica. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 18(3), 30-40. https://doi.org/10.31505/rbtcc.v18i3.920

Carneiro, K. S.; Santos, B. C. (2021). Valores Feministas na Clínica Comportamental: Reflexões Baseadas em Bell Hooks. Acta Comportamentalia, 29(2), 61-79. http://www.revistas.unam.mx/index.php/acom/article/view/79613

Couto, A. G.; Dittrich, A. (2017). Feminismo e Análise do Comportamento: Caminhos para o Diálogo. Perspectivas em Análise do Comportamento, 8(2), 11-16. https://doi.org/10.18761/PAC.2016.047

Fideles, M. N. D.; Vandenberghe, L. (2014). Psicoterapia Analítica Funcional Feminista: Possibilidades de um Encontro. Psicologia: Teoria e Prática, 16(3), 18-29. http://dx.doi.org/10.15348/1980-6906/psicologia.v16n3p18-29

Hayes, S.; Barnes-Holmes, D; Wilson, K. (2012). Contextual Behavioral Science: Creating a science more adequate to the challenge of the human condition. Journal of Contextual Behavioral Science, 1, 1–16. https://doi.org/10.1016/j.jcbs.2012.09.004

Matos, M. A. (2001). Comportamento Governado por Regras. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 3(2), 51-66. https://doi.org/10.31505/rbtcc.v3i2.135

QG Feminista: https://qgfeminista.org

Escrito por:

Ana Clara Almeida Silva

Psicóloga, Doutoranda e Docente do curso de Pós-Graduação em Análise Comportamental Clínica e no curso de Formação em FAP do IBAC.

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