É normal sentir raiva da cliente que está em um relacionamento abusivo?

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Começo esse texto pedindo encarecidamente que normalizemos sentimentos e emoções, já que ambos são respostas privadas que são evocadas (evocadas sim, pois fazem parte de um processo entrelaçado de respondentes e operantes) por diversas situações. Eu não consigo controlar o que eu sinto, por isso, sentir, seja qual sentimento ou emoção for, é completamente esperado em qualquer contexto. O “não normal” é o não sentir, é o vazio, o nada (Skinner, 1985/1953). Sendo assim, qualquer situação pode evocar em qualquer pessoa sentimentos de raiva, inclusive contextos nos quais terapeutas atendem vítimas de/em relacionamentos abusivos (Tsai, Kohlenberg, Kanter, et al., 2011).

A violência contra a mulher é definida pelo Instituto Maria da Penha e explicada como um ciclo (algo que não tem previsão de chegar ao fim) composto por três fases:

Fase 1 – Aumento da Tensão,

Fase 2 – Ato de Violência,

Fase 3 – Arrependimento e Comportamento Carinhoso.

Para quem quiser compreender melhor esse ciclo, eu indico a leitura detalhada no site do Instituto Maria da Penha e do meu texto para este blog sobre uma visão analítico-comportamental desse fenômeno: O Ciclo da Violência Contra a Mulher a Partir de uma Visão Analítico-Comportamental.

Bem, a partir deste parágrafo irei propor algumas inferências sobre as minhas experiências ao atender esses casos, irei relatar os sentimentos que senti e os sentimentos que ouvi de supervisionandas. Por fim, eu gostaria de deixar um espaço no qual possamos dialogar sobre como ajudar as vítimas a saírem das relações abusivas ao invés de tentarmos suprimir os nossos sentimentos (terapeuta é gente!), já que nos foi ensinado que nós terapeutas não podemos sentir raiva de nenhum ou nenhuma cliente e, se sentirmos, é porque existe algo de errado conosco (relembre o meme Será que os psicólogos pensam: “16h, hora da sessão daquele CHATO).

Ao longo da minha trajetória como psicoterapeuta feminista, os casos de violência contra a mulher chegam e chegavam aos montes em meu consultório. Quando eu ainda atendia presencialmente, foram incontáveis as vezes em que um marido abusador acompanhou a esposa até a psicoterapia dela e a esperou na recepção enquanto ela falava sobre o relacionamento abusivo vivido dentro da minha sala. Eu vivi isso presencialmente com mulheres se sentindo amedrontadas em suas próprias sessões de terapia e no formato on-line, principalmente na época da quarentena em que muitas mulheres ficaram totalmente presas em casa com seus abusadores.

Não foram raras as vezes em que eu acreditei que uma mulher vítima de violência mulher fosse sair daquela situação, muitas vezes elas sabiam que teriam apoio para deixar o abusador, tinham condições financeiras para bancar essa decisão, mas a dependência emocional, o medo do julgamento por ter estado em situação de violência (vergonha do que os outros irão pensar), o medo do próprio abusador (é comum que eles sejam vistos como onipotentes) e os poucos e únicos reforçadores obtidos nessa relação impediam que essa mulher deixasse esse relacionamento. Eu vivi isso muitas vezes como psicoterapeuta e todas as vezes em que eu acreditei que a mulher deixaria o abusador e a relação abusiva se mantinha, eu sentia raiva e não queria mais atender aquele caso. Escrevo isso de coração aberto com o intuito de que outras terapeutas “baixem a guarda” e sejam honestas com seus próprios sentimentos. Atender casos onde há relacionamento abusivo é extremamente desgastante e eu vou explicar o porquê.

Tal como citado nos parágrafos anteriores, a violência contra a mulher é um ciclo, pois se repete sem previsão de fim. A primeira fase é composta por violência psicológica, já a fase 2 ocorre o ato físico da violência. Após esse ato, ocorre a terceira fase em que a mulher se depara com um homem arrependido e carinhoso. Como isso aparece na psicoterapia? Na primeira fase, a mulher reclama, chora e se torna muito queixosa para a terapeuta, quando a violência física acontece (segunda fase), essa mulher se encoraja para denunciar e sair da relação, nesse momento, terapeuta e cliente estão unidas e muito conectadas para finalmente conseguir que essa mulher deixe esse abusador. Porém, quase que imediatamente ao fim da segunda fase, o homem se torna carinhoso e arrependido, diz que não fará “aquilo” mais, promete que fará terapia, que irá para a igreja (ou qualquer outra promessa de melhoria que não irá se manter), que tudo será diferente de antes (fase 3) e a cliente retorna para sua sessão (quando não falta ou nunca mais retorna, por sentir vergonha) e diz que “ele mudou” e que irá dar mais uma chance.

Após acompanhar esse ciclo de violência por algumas vezes, é comum que as pessoas ao redor da cliente, inclusive a sua própria terapeuta, se sintam irritadas e com raiva. As pessoas depositam um alto nível de energia para ouvir, estar junto, odiar aquele abusador e dar suporte para a mulher, e no fim, ela se mantém na relação abusiva. O sentimento que eu presenciei em mim mesma e em minhas supervisionandas foi de falência, nós sentimos que nós estávamos falindo, perdendo uma grande briga e o fato é que estávamos mesmo – se é que em algum momento nós tivemos alguma chance de vencê-la. Após experimentar esse sentimento diversas vezes, você, enquanto terapeuta, provavelmente irá sentir irritação, raiva e vontade de desistir, pois a psicoterapia deixa de ser terapêutica e se torna um espaço de desabafo de um ciclo interminável de violência, já que independente da fase do ciclo, a falência terapêutica é quase que garantida.

Após contar um pouco sobre minhas experiências e de algumas supervisionandas, eu gostaria de fazer alguns apontamentos:

  • Pessoas sentem e isso não muda quando estamos no papel de psicoterapeutas (Tsai, Kohlenberg, Kanter, et al., 2011). Além do mais, nós somos em grande maioria mulheres e não é permitido às mulheres sentirem “raiva”, “irritação”, é contra a socialização para a feminilidade – se quiser entender um pouco melhor, leia: Patriarcado, Transtornos de Personalidade e Psicoterapia Feminista (Beauvoir, 1970).

  • Para a Psicoterapia Analítica Funcional (FAP), nossos sentimentos são nossos aliados, pois podemos utilizá-los diretamente em intervenções demonstrando para a cliente o que estamos sentindo ou utilizando-os como balizadores do que acontece dentro e fora da sessão (para fazer isso é necessário um extenso conhecimento teórico e prático) (Tsai, Kohlenberg, Kanter, et al., 2011).

  • Repensar o ciclo de violência contra a mulher como algo que atinge (leva ao sofrimento) as pessoas ao redor da mulher (amigas, familiares, terapeuta) e que as reações dessas pessoas quase nunca é um ato de desamor, é algo mais voltado para “não suporto mais essa situação” (só que parece que para terapeutas isso não é permitido).

Há algum tempo eu adotei a medida de que eu só atenderia casos de relacionamento abusivo quando a mulher já estivesse fora da relação, essa decisão ocorreu para respeitar os meus limites. A violência contra a mulher atinge diversas camadas da sociedade; porém, eu ainda arrisco dizer que deixar esse relacionamento é algo que apenas a mulher poderá decidir (ou o abusador desistir de estar com ela) e, enquanto isso não acontecer, dificilmente terá algo que poderemos fazer de diferente para ajudá-la.

Enquanto pertencente à uma sociedade e cidadã, eu posso votar melhor, buscar por políticas públicas e disseminar o feminismo entre amigas/os e psicólogas/os. Já, como terapeuta (eu falo por mim!), eu posso esperar apenas me deparar com uma cliente vítima de relacionamento abusivo que tenha decidido enfrentar a vergonha, aceitar ajuda e viver uma vida que não será mais idealizada junto a uma melhora impossível do abusador. Essa é a minha visão, é o que eu vivi, mas eu não conheço todas as realidades de todas as psicoterapeutas que trabalham com esse público. Assim, se possível, eu gostaria de ouvir essas opiniões, vivências e visões.

Referências:

https://www.institutomariadapenha.org.br/

Beauvoir, S. (1970). O segundo sexo: Fatos e mitos. Difusão Europeia do Livro. (Trabalho original publicado em 1949).

Fideles, M. N. D.; Vandenberghe, L. (2014). Psicoterapia Analítica Funcional Feminista: Possibilidades de um Encontro. Psicologia: Teoria e Prática, 16(3), 18-29. http://dx.doi.org/10.15348/1980-6906/psicologia.v16n3p18-29.

Skinner, B. F. (1985). Ciência e Comportamento Humano. Martins Fontes. (1ª edição publicada em 1953).

Tsai, M., Kohlenberg, R. J., Kanter, J. W., Kohlenberg, B., Follete, W. C., & Callaghan, G. M. (2011). Um guia para a Psicoterapia Analítica Functional (FAP): consciência, coragem, amor e behaviorismo. Santo André, SP: ESETEc Editores Associados.

Escrito por:

Ana Clara Almeida Silva

Psicóloga, Doutoranda e Docente do curso de Pós-Graduação em Análise Comportamental Clínica e no curso de Formação em FAP do IBAC.

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