As interseccionalidades na vivência de pessoas LGBTQIAPN+

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Você sabia que em algum momento dos anos 90 a sigla que hoje conhecemos como LGBTQIAPN+ era conhecida como GLBT? (Brunetto, 2023). A sigla nessa época somente expressava um lugar de visibilidade a Gays, Lésbicas, Bissexuais, Transexuais e Travestis, com o G encabeçando a sigla, sendo a primeira letra que as pessoas pensariam ao falá-la. Os debates e discussões sobre identidade de gênero e o crescimento da complexidade envolvendo a identidade trans ainda nem tinham ganhado visibilidade e muito menos representatividade.

E se voltarmos um pouco na história, na década de 80 e antes das letras B e T terem seu espaço, as pessoas da comunidade eram referidas como GLS que significa Gays, Lésbicas e Simpatizantes. Olha só que informação curiosa: no início da história da comunidade LGBTQIAPN+, a comunidade era somente referida pela sociedade como “gays”, muito embora as lésbicas tivessem seu espaço expresso ali no L. E as demais sexualidades e identidades de gênero que temos hoje… não havia lugar para elas, pois “Simpatizantes” eram as pessoas que ainda não haviam se entendido como gays ou lésbicas, as que estavam “dentro do armário”, bem como as pessoas bissexuais, transexuais e as travestis que se engajavam no movimento, se expunham e as pessoas hétero que simpatizavam com a luta, como a Madonna.

A sociedade como um todo só conhecer o movimento LGBTQIAPN+ como “gays” tem sua justificativa. E ela começa a partir de mais história, dessa vez em 1969, quando aconteceu “A revolta de Stonewall” em Nova York. O Stonewall Inn era um bar/boate que aceitava a entrada de pessoas LGBTQIAPN+ na época, embora a prática de sexo, relacionamentos homoafetivos e a existência das travestis e pessoas trans fosse determinada como inaceitável e ilegal. A polícia de NY tendo ciência disso, fizeram um cerco para encurralar e prender as pessoas, em uma tentativa de dar um “basta”. Resistência foi a resposta das pessoas gays, lésbicas e transexuais que haviam ali, sobretudo as negras, e a revolta aconteceu por 3 dias, marcando para sempre a história da comunidade. Um dia que até hoje é celebrado como “Dia do Orgulho LGBTQIAPN+”, o dia 29 de junho (Vieira, 2020).

Ou “Dia do Orgulho GAY”, como foi denominado na época, porque houve um movimento de disputa pelo marco que trouxe a atenção da sociedade para a luta. Ela foi apropriada por homens gays, cisgênero e brancos em prol da criação de uma hegemonia GGGG que favorece a visibilidade dos gays, muito embora hoje se ressalte que a primeira pedra da Revolta de Stonewall foi jogada por Marsha P. Johnson, uma mulher trans e lésbica preta que estava no local (Vieira, 2020).

Aqui compreendemos o porquê da existência de uma sigla tão longa. É um ato de resistência trazermos uma letra para representar cada um dos grupos existentes dentro da comunidade e do + para representar as letras que ainda virão e as que existem, porém não possuem tanta visibilidade. É parte da luta por direitos nós decretarmos “não” ao apagamento, ao silenciamento, à invisibilização tanto atual quanto histórica, tanto estrutural quanto institucional.

Falando de invisibilização, compreendemos porque hoje a letra é encabeçada pelo L de lésbica. A modificação de GLBT para LGBT aconteceu após debates e discussões na 1ª Conferência Nacional GLBT que ocorreu em 2008 em Brasília. Isso mesmo, em solo brasileiro, não estadounidense. A Liga Brasileira de Lésbicas (LBL) tomou a iniciativa de debater sobre o assunto, visto que o tema do encontro era “Direitos Humanos e Políticas Públicas: o Caminho para Garantir a Cidadania de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais” (Brunetto, 2023).

Sua justificativa foi a vulnerabilidade perpassada por dois marcadores sociais que uma lésbica possui: a de uma mulher vivendo em uma sociedade patriarcal e a de ser lésbica vivendo em uma sociedade heteronormativa. Se incluirmos a realidade e as vivências de uma mulher lésbica negra, especialmente de pele retinta, temos ainda mais um marcador social de importância atual e histórica: a de uma negra vivendo em uma sociedade que sustenta sistemas de escravidão velada. E essa lista se estende ao considerarmos pessoas gordas e que estão em situação de obesidade, pessoas com deficiências físicas e mentais, pessoas com transtornos psicológicos, pessoas de classe baixa e em situação de pobreza, pessoas em situação de rua, entre outras vulnerabilidades sociais que podem interseccionar com as vulnerabilidades da comunidade LGBTQIAPN+, com as das mulheres e com os negros.

É esse perpasse de marcadores sociais na vivência de uma pessoa que chamamos de interseccionalidade:

Vários sistemas de opressão – as de raça ou etnia, classe social, capacidade física, localização geográfica, entre outras -, que relacionam-se entre si, se sobrepõem e demonstram que o racismo, o sexismo e as estruturas patriarcais são inseparáveis e tendem a discriminar e excluir indivíduos ou grupos de diferentes formas (Ignácio, 2023).

Fica muito óbvio, quando visualizamos a situação por essa perspectiva, que a apropriação histórica da luta por direitos e visibilidade feita por homens gays cisgêneros reforçam os sistemas de invisibilização de todas as outras populações dentro de LGBTQIAPN+. Assim como é claro que um homem branco com deficiência terá mais direitos e recursos que uma mulher branca com deficiência; e um homem branco gay terá mais liberdade e representatividade do que um homem negro gay.

A pauta sobre interseccionalidades ganha ainda mais importância quando destrinchamos os marcos históricos como fiz aqui. E ao observar que os sistemas de opressão podem, sim, favorecer diferentes formas para discriminar e excluir, mas que tendem a utilizar as formas mais discretas, mais veladas e imperceptíveis a olho nu em muitos casos – seja a utilização de uma letra representante do privilégio para encabeçar uma sigla; custos altíssimos para realizar procedimentos de redesignação sexual e de transição de gênero mesmo que a lei permita que sejam realizados; a maior parte das camadas pobres da população serem compostas por pessoas negras; a tentativa de reversão da Lei que permite o casamento homoafetivo que está acontecendo nesse exato instante no Senado; a falta imensa de rampas de acesso a pessoas com deficiência física ou o difícil acesso a elas, por estarem longe dos estabelecimentos; a exclusão velada de pessoas com deficiências mentais e transtornos psicológicos que existem em diversos contextos, como escolas, hospitais e empresas; e entre muitos outros…

Finalmente, fica muito óbvio, para nós, que há muito a se enxergar, empatizar, considerar e questionar para além da bolha de privilégio que pessoas dentro da curva de normalidade possuem, como eu, uma mulher cisgênero e branca de classe média-baixa.

Quer saber mais? Leia…

Reis, T. (2018) Manual de Comunicação LGBTI+. 2ª edição. Curitiba: Aliança Nacional LGBTI / GayLatino.

Silva, Z. P. (2017). “Sapatão não é bagunça”: Estudo das organizações lésbicas da Bahia. Orientadora: Rosangela Costa Araújo. Doutorado Multi-Institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento – Universidade Federal da Bahia, Salvador (BA).

Referências

Brunetto, D. A trajetória das lutas pela Visibilidade Lésbica. SIPAD, UFPR. Disponível em http://www.sipad.ufpr.br/portal/a-trajetoria-das-lutas-pela-visibilidade-lesbica/. Acesso em 05 de dezembro de 2023.

Ignácio, J. O que é interseccionalidade?. Politize!, 27 de junho de 2023. Disponível em https://www.politize.com.br/interseccionalidade-o-que-e/.

Vieira, W. Linha do tempo dos direitos LGBT no Brasil e no mundo. Gama, Uol. 28 de junho de 2020. Reportagem especial. Disponível em https://gamarevista.uol.com.br/semana/orgulho-de-que/linha-do-tempo-direitos-lgbt-no-brasil-e-no-mundo/.

Escrito por:

Ana Katarine Santos

Psicóloga. Formada em Análise Comportamental Clínica (IBAC). Líder do capítulo de Brasília do Projeto Global “Viva Com Consciência, Coragem e Amor” da Mavis Tsai, PhD. Ativista dos movimentos anti-racista, feminista e LGBTQIAPN+. Uma das coordenadoras do SIG sobre FAP da ACBS Brasil. Terapeuta comportamental contextual que trabalha primariamente com Psicoterapia Analítico Funcional (FAP) e com a base teórica da Teoria de Quadros Relacionais (RFT), bem como Terapia Feminista, Terapia Afirmativa e Terapia Comportamental Integrativa de Casal.

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