A valentia do anonimato

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Woodstock, 1999. Um grande festival de rock para relembrar o icônico show de 1969, no maior estilo “paz-e-amor”. Mais de 300 mil pessoas reunidas no estado de Nova Iorque para curtirem três dias de shows com as bandas daquele momento. Era para ser tudo bem legal, muito rock, gente bonita, sol e verão. Mas deu ruim. Veja o trailer do documentário da Netflix. Teremos alguns spoilers abaixo.

Para começar, a infraestrutura era precária para tanta gente junto ao mesmo tempo – o que me faz pensar que a gente não alcança o nirvana sem o básico, como Maslow já dizia em sua hierarquia de necessidades.

Só para relembrar, a teoria da hierarquia das necessidades humanas, elaborada em 1943 por Abraham Maslow, define que há aspectos básicos da sobrevivência humana que estão na base da pirâmide, e a motivação para outros níveis de necessidades só acontece se o nível mais baixo estiver satisfeito. Ou seja, segundo o autor, as pessoas não vão se preocupar por questões de realização pessoal e propósito de vida, se estiverem com fome, por exemplo. Indivíduos precisam preencher necessidades do nível básico, antes de se sentirem privados de outros aspectos da vida. A teoria recebeu críticas, mas ainda permanece como um dos paradigmas para compreender a motivação humana.

No degrau das necessidades fisiológicas, encontramos os reforçadores incondicionados, definidos pela filogenética. Conforme essas necessidades vão sendo satisfeitas, outros aspectos passam a ser relevantes para o indivíduo, como segurança, relacionamentos, estima até chegar na realização pessoal, definidos tanto pela ontogenética quanto pela cultura.

O mais importante dessa teoria é saber que há diferentes níveis diferentes de necessidades para cada pessoa, e não há muito como motivar o indivíduo para emitir certos comportamentos, se em alguns aspectos ainda existir privação de reforçadores básicos.

Hierarquia das necessidades de Maslow
Fonte: Wikimedia Commons https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Hierarquia_das_necessidades_de_Maslow.svg

Lá em Woodstock 1999 não tinha água para beber, a comida era cara, estava muito calor, os banheiros estavam imundos… Ou seja, quem é que queria se preocupar com a paz e o amor se sobrava lixo no chão?

Em determinado momento, as bandas incentivaram o público a jogar lixo para cima e comportamentos agressivos começaram a surgir. Houve muita confusão e um grupo de milhares de pessoas destruiu parte do palco, cercas e outras estruturas, bem no estilo efeito manada.

Vamos entender esse efeito: Imagine que você está investindo na bolsa. Se você está começando a investir, talvez fique bem atento/a ao que outros investidores dizem sobre o mercado. Talvez você leia diversos boletins ou escute podcasts, ou converse com investidores mais experientes para descobrir qual o melhor investimento para seu dinheiro.

Em um belo dia, você ouve falar que a ação XYZ3 está com previsão de queda. Para evitar prejuízos maiores, você rapidamente vende a ação, na tentativa de não perder muito dinheiro. No entanto, assim como você, centenas de outros pequenos investidores ouvem a mesma notícia e tomam a mesma decisão: vender as ações.

Como você já sabe, tão forte como a Lei da Gravidade é a Lei da Oferta e Demanda. E se alguma coisa passa a ter mais oferta, o preço cai (o oposto também é verdadeiro, se alguma coisa passa a ter mais procura, o preço sobe).

Ou seja, aquela previsão de queda das ações se realiza, não porque alguma coisa estava acontecendo na empresa ou no mercado, mas porque todo mundo acreditou nisso, passou a vender e o preço efetivamente caiu com tanta oferta de ações no mercado.

Esse movimento geral do mercado é também conhecido como efeito manada. Uma pessoa ou um pequeno grupo age de uma determinada maneira e, influenciadas por essa ação, outras pessoas passam a agir da mesma forma, mesmo que esse comportamento não faça nenhum sentido. A literatura do tema diz que quando o ser humano é livre para fazer o que deseja, ele normalmente imita os outros.

A Economia Comportamental, com sua bagagem cognitivista, interpreta esse efeito de várias maneiras, inclusive colocando um viés de normas sociais, segundo o qual, pessoas tendem a se enquadrar nas normas definidas pelo grupo a que pertence. Ou seja, apenas um outro nome para o nosso querido reforço social.

Lendo essa história, talvez você tenha se lembrado da corrida aos supermercados para comprar papel higiênico, nos primeiros meses de 2020, logo no começo da pandemia. Se algumas pessoas estão comprando, é porque pode faltar. E se todo mundo comprar, aí é que vai faltar mesmo. Rapidamente, as prateleiras ficaram vazias, pessoas estocaram centenas de rolos de papel higiênico em casa (talvez estejam usando até hoje).

Outro exemplo é a classificação de outras pessoas sobre um produto online. No e-commerce vemos com frequência frases como “quem comprou isso também comprou aquilo”, ou “99% relevante”. São dicas do comportamento do grupo para influenciar o seu comportamento de escolher um determinado produto.

Quando alguém lá de Woodstock teve a brilhante ideia de colocar fogo no lixo, outros viram, acharam legal e repetiram o comportamento. Individualmente, talvez, nenhuma das pessoas fosse incendiária; isoladamente jamais pensariam nisso. Mas em grupo, as pessoas são influenciadas pelas ações dos demais e principalmente, compartilham as consequências de suas ações.

O caos começou com diversos focos de incêndio sendo replicados em pontos isolados do gramado. Seguiu com um movimento de saques nas lojas e um quebra-quebra generalizado.

Vamos analisar funcionalmente:

OM: Um longo fim de semana com operações estabelecedoras poderosas de calor, consumo de álcool, privação de água, apoio do grupo.

SD: presença de estímulos discriminativos em letras como Break Stuff [quebrar coisas] do Limp Bizkit e Fire [fogo] do Red Hot Chilli Peppers, entre outras (que podem ter funcionado como regras).

RESPOSTA: comportamentos da destruição, como atear fogo nos materiais disponíveis, saquear lojas e quebrar caixas eletrônicos, assediar e estuprar mulheres, brigar e agredir.

CONSEQUÊNCIAS: alta probabilidade de reforço social de pares e baixa probabilidade de punição (já que o evento estava no fim e não havia polícia por perto).

É verdade que o rock dos anos 1995/2000 era mais pesado. Mas não é possível culpar apenas as bandas pelo caos que se instalou. O corpo de bombeiros se negou a entrar para controlar o incêndio, dada a falta de segurança. Até que chegou a polícia, equivalente à tropa de choque, e deu um jeito na situação. O festival terminou com o saldo de 3 mortes, 4 estupros, 1200 feridos, 44 presos, segundo notícias da época.

Agora faça uma pausa.

Reveja o documentário e considere que não estamos no mundo real, e sim no Twitter ou em outra rede social.

Talvez exista um paralelo com os mesmos elementos funcionais. Inflamados por discursos do grupo, no típico efeito manada, e envolvidos por condições ótimas de anonimato e proteção, usuários da rede falam o que querem, de forma cruel e agressiva, sem medo das consequências, até porque elas nem existem. Muito do que se escreve em uma rede social jamais seria falado em privado ou cara a cara. O anonimato do grupo torna as pessoas mais valentes.

Para saber mais:

Chen, Y. F. (2008). Herd behavior in purchasing books online. Computers in Human Behavior, 24(5), 1977-1992.

Rook, L. (2006). An economic psychological approach to herd behavior. Journal of Economic Issues, 40(1), 75-95.

Scharfstein, D. S., & Stein, J. C. (1990). Herd behavior and investment. The American economic review, 465-479.

Escrito por:

Patrícia Luque

Supervisora de Estágio no IBAC. Psicóloga clínica. Doutora em Ciências do Comportamento e Mestre em Psicologia pela UnB

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