A mãe narcisista

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Antes de discutir o termo “mãe narcisista” de uma perspectiva analítico-comportamental e feminista, vamos compreender o mito grego de Narciso e a inclusão e a evolução do termo “narcisista” dentro da Psicologia em geral.

Narciso, filho do Deus do rio Cefiso e da ninfa Liríope, nasceu numa região da Grécia Antiga conhecida como Beócia. Ao nascer, sua mãe perguntou para um oráculo se Narciso viveria durante muito tempo, já que sua beleza era estonteante. O oráculo respondeu que viveria sim, desde que ele nunca conhecesse a si próprio; pois, se isso acontecesse, uma maldição seria lançada sobre ele e lhe causaria a morte. Ao se tornar adulto, Narciso virou caçador e passou a atrair os olhares de todas as ninfas e donzelas daquela região. Porém, apesar de toda a atenção recebida, Narciso preferia viver só.

A ninfa Eco se apaixonou por Narciso, mas teve o seu amor negado por ele. A partir disso, Eco pediu para que Nêmesis, a Deusa da vingança, lançasse a seguinte maldição sobre Narciso: “Que Narciso se apaixone com muita intensidade, mas não consiga possuir a sua amada“. A maldição foi lançada e Narciso se apaixonou de forma intensa, só que pela sua própria imagem. Eco atraiu Narciso para uma fonte e, quando o mesmo se abaixou para beber água, avistou a sua imagem refletida nas águas. Nesse momento, ficou encantado com o que viu e desejou possuir aquela imagem; porém sem saber que se tratava dele mesmo.

O mito apresenta alguns desfechos diferentes: um deles relata que Narciso morreu de desgosto por admirar tanto a imagem e não conseguir possuí-la. Outras histórias dizem que ele morreu afogado ao tentar tocar na imagem que via refletida. Independente do desfecho, Narciso morreu por enxergar apenas a si próprio. A partir desse mito, o termo “narcisismo” ou “personalidade narcisista” passou a fazer parte do vocabulário popular ao descrever pessoas egoístas e pouco empáticas.

De acordo com Holmes (2001), as primeiras associações entre o mito de Narciso e a psicologia partiram de Havelock Ellis e Alfred Binet. Em 1898, Ellis compreendeu e descreveu casos de homossexualidade como o amor de uma pessoa pelo reflexo de si mesma refletido em uma outra pessoa do mesmo sexo. Já Binet comparou o mito do Narciso como uma forma de fetiche, no qual a própria pessoa se tomaria como seu próprio objeto sexual. Contudo, Freud foi o principal autor que destrinchou o termo e o utilizou para explicar o inconsciente humano, interpretando o narcisismo como um processo necessário para o desenvolvimento infantil, podendo ou não se tornar patológico.

Por outro lado, apenas em 1980 que o termo “personalidade narcisista” foi incluído no volume III do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-III), sendo que atualmente o termo utilizado é o “Transtorno de Personalidade Narcisista” (DSM-5-TR, 2022). Esse vocábulo foi integrado ao DSM III a partir dos estudos dos psicanalistas Heinz Kohut e Otto Kernberg, sendo que o diagnóstico desse transtorno se dava a partir do surgimento espontâneo da transferência entre cliente e analista durante o processo psicanalítico, sendo tal transferência crítica para a realização do diagnóstico definitivo da personalidade narcisista. O que define a personalidade narcisista patológica nessa perspectiva é a negligência de cuidados básicos e empáticos que a criança sofre. Essa negligência é revivida em análise através da transferência da/do cliente com seu analista (se algum(a) psicanalista ler esse texto, peço desculpas pelo resumo, mas o foco aqui é análise do comportamento e a história do transtorno dentro do DSM é de extrema importância) (Goldstein, 1985).

Em uma tentativa de contrapor as concepções psicanalíticas de Kohut e Kernberg, o DSM-III buscou uma abordagem mais objetiva com a descrição de sintomas e traços de personalidade que diferenciavam a personalidade narcisista (e outros transtornos de personalidade) dos outros grupos de pacientes. Nessa edição, a proposta era criar um sistema diagnóstico sem base teórica (diminuição do uso psicanalítico dentro do DSM) que se reportava cada vez mais a dados estatísticos e epidemiológicos (Alvarenga, Flores-Mendoza & Gontijo, 2009). Foi a partir do DSM-III que os transtornos de personalidade foram divididos em três grupos (também conhecidos como clusters), sendo a personalidade narcisista pertencente ao grupo B (cluster B): transtornos de personalidade borderline, histriônica e narcisista. Porém, apesar dos esforços em trazer novos estudos sobre o assunto, até aquele momento ainda não existiam materiais que estabeleciam confiabilidade e validade da personalidade narcisista como uma patologia possível de ser diagnosticada através de critérios sistematizados, tendo sido a descrição desse transtorno a partir apenas das proposições dos psicanalistas Kohut e Kernberg (Goldstein, 1985).

No DSM-IV também houve algumas mudanças relacionadas aos transtornos de personalidade, pois nessa edição foram inclusas questões culturais, idade, gênero, prevalência, padrão familiar e diagnóstico diferencial (Alvarenga, Flores-Mendoza, Gontijo, 2009). Apesar das mudanças, as controvérsias relacionadas principalmente ao transtorno de personalidade narcisista prevaleceram; seguem algumas críticas citadas por Esbec & Echeburúa (2011):

  • Baixa pontuação das propriedades psicométricas dos transtornos de personalidade (principalmente do grupo B), sendo tais diagnósticos mantidos por consenso entre profissionais da área e tradição psiquiátrica ao invés de dados empíricos.

  • Baixa validade interna do diagnóstico psiquiátrico, ou seja, as/os profissionais apresentam dificuldades em afirmar que uma variável (ou diversas variáveis) causou outra variável (Cozby, 2003).

  • Baixa validade externa, uma vez que não há evidências de que os diagnósticos são possíveis de serem generalizados (e consequentemente diagnosticados) na população de forma geral (Cozby, 2003).

  • Baixa consistência interna, pois existem diversas sobreposições de quadros clínicos, sendo muito amplos os quadros clínicos de psicopatologia, levando a diversas comorbidades (conceito citado pela primeira vez na revisão do DSM III).

Já no DSM-5 (2014) houve uma tentativa de introduzir uma abordagem mais objetiva com o intuito de sanar diversas deficiências presentes no DSM-IV-TR. Na seção III do DSM-5 foi apresentada uma forma alternativa de compreender as diferenças entre o que é normal e o que mal-adaptativo, sendo que nesse modelo a personalidade narcisista estava/está pautada sobretudo pelas características de grandiosidade e necessidade de atenção. Contudo, mesmo com todas essas mudanças, as lacunas citadas por Esbec & Echeburúa (2011) ainda se mantiveram nessa nova versão (Cozby, 2003; Miranda, 2020).

Apesar da importância da psicanálise para a construção do conceito “personalidade narcisista”, inclusive para o manual de diagnóstico psiquiátrico (DSM), a forma de diagnosticar esse transtorno utilizado por outras abordagens da psicologia (principalmente as terapias cognitivas e comportamentais) difere da forma como a psicanálise vinha propondo esse diagnóstico inicialmente (confesso que não pesquisei a fundo sobre o formato da formulação de casos em terapias psicodinâmicas). As terapias comportamentais, e principalmente as cognitivas ou cognitivo-comportamentais, fazem uso dos critérios diagnósticos do DSM-5 (2014). De acordo com o DSM-5, o transtorno de personalidade narcisista se refere à um padrão difuso de grandiosidade (em fantasia ou comportamento), necessidade de admiração e falta de empatia que surge no início da vida adulta e está presente em vários contextos, sendo o diagnóstico confirmado a partir da presença de cinco ou mais dos critérios descritos abaixo:

  • Tem uma sensação grandiosa da própria importância (p. ex., exagera conquistas e talentos, espera ser reconhecido como superior sem que tenha as conquistas correspondentes).

  • É preocupado com fantasias de sucesso ilimitado, poder, brilho, beleza ou amor ideal.

  • Acredita ser “especial” e único e que pode ser somente compreendido por, ou associado a, outras pessoas (ou instituições) especiais ou com condição elevada.

  • Demanda admiração excessiva.

  • Apresenta um sentimento de possuir direitos (i.e., expectativas irracionais de tratamento especialmente favorável ou que estejam automaticamente de acordo com as próprias expectativas).

  • É explorador em relações interpessoais (i.e., tira vantagem de outros para atingir os próprios fins).

  • Carece de empatia: reluta em reconhecer ou identificar-se com os sentimentos e as necessidades dos outros.

  • É frequentemente invejoso em relação aos outros ou acredita que os outros o invejam.

  • Demonstra comportamentos ou atitudes arrogantes e insolentes.

A prevalência desse diagnóstico é em torno de 6,2% da população em âmbito global e, diferente do que se tem observado em redes sociais ao nos depararmos frequentemente com a queixa de que a pessoa teria uma mãe (mulher) narcisista, a prevalência do diagnóstico é de 50 a 75% em pessoas do sexo masculino (DSM-5, 2014), ou seja, os dados do manual diagnóstico não estão em harmonia com o que está sendo difundido popularmente. Em função dessa contradição observada entre o manual diagnóstico e o saber popular, faz-se necessário que nós, enquanto analistas do comportamento, façamos alguns questionamentos sobre a nossa própria prática clínica:

  • Como operacionalizar os sintomas dos transtornos de personalidade descritos no DSM para realizar uma formulação de caso idiossincrática (uma vez que trabalhar com padrões fechados de sintomas está mais voltado para uma compreensão nomotética dos indivíduos)?

  • De qual forma podemos considerar questões culturais referentes a socialização masculina e feminina ao realizar diagnósticos?

  • Dar nome para um padrão comportamental (narcisista) é o suficiente para compreender e oferecer um tratamento adequado para a pessoa?

  • O que fazer para não julgar a pessoa ao realizar o diagnóstico ou seria o diagnóstico o próprio julgamento moral em si mesmo?

  • Como diagnosticar sem estigmatizar a pessoa que recebe o diagnóstico, uma vez que o próprio conceito é carregado de julgamentos?

  • Será que toda vez que percebemos insensibilidade ou falta de empatia das pessoas diante de nós, essa pessoa será chamada por alguém de narcisista?

Tal como Esbec & Echeburúa (2011) explicitaram, é possível perceber que a operacionalização dos sintomas desse transtorno é muito ampla e depende em grande parte do julgamento de quem realiza o diagnóstico, seja essa/esse profissional da psicologia ou da psiquiatria. Além do mais, esse transtorno é composto por um padrão difuso de grandiosidade (em fantasia ou comportamento), necessidade de admiração e falta de empatia – comportamentos aceitáveis e reforçados em homens, porém muito criticado em mulheres.

Para compreender melhor, parece ser necessário voltar para a clássica frase de Beauvoir (1949/1970): “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. O tornar-se mulher se dá a partir da socialização feminina que se inicia desde o momento em que uma mulher descobre que dentro do seu útero existe uma bebê do sexo feminino. A socialização feminina se dá perante a dominação masculina (Nicolodi & Hunziker, 2021), sendo essa dominação realizada através da exploração sexual e principalmente reprodutiva das mulheres. Diferente do que acontece com as mulheres, a socialização masculina ensina e reforça comportamentos de grandiosidade, resolução de problemas a partir da violência (inclusive a aceitação entre os pares se dá nesse espaço de violência) e exploração da capacidade sexual e reprodutiva das mulheres (falta de empatia com o sexo oposto).

A exploração sexual e reprodutiva tem tem levado as mulheres diretamente para a heterossexualidade e a maternidade compulsórias. A heterossexualidade compulsória se refere à crença de que a heterossexualidade é a única forma normal de se relacionar com alguém, sendo que desde crianças somos ensinadas e ensinados que quando atingirmos a maturidade sexual nós iremos nos interessar, por regra, apenas por pessoas do sexo oposto. Ao se relacionar com homens, as mulheres seguem o desfecho proporcionado pelo patriarcado para todas as meninas e mulheres: o cuidado com as outras pessoas, a empatia, a leveza e a percepção de que a felicidade e o amor verdadeiro só será possível através da maternidade, ou seja, a concretização da maternidade compulsória.

Porém, quando uma mulher tenta romper com essa estrutura patriarcal, questionando a feminilidade, incluindo nesse questionamento a maternidade enquanto fonte máxima de felicidade, a mesma é chamada de borderline ou algum outro transtorno que depende do julgamento da/do profissional em questão, uma vez que os critérios diagnósticos são muito amplos e pouco operacionais. Ou então, quando essa mulher se torna mãe e não se comporta tal como a sociedade exige (se sacrificando constantemente pelos filhos e/ou filhas), essa mãe poderá facilmente ser julgada ou diagnosticada como narcisista.

De acordo com Nicolodi & Hunziker (2021), em uma estrutura patriarcal, os julgamentos são diferentes a depender do sexo da pessoa em questão. Se um pai age de forma individualista, egoísta, sem empatia e de modo negligente com sua prole, esse homem será chamado apenas de homem. Entretanto, se uma mãe age dessa mesma forma, ela será chamada de mãe narcisista. Para os homens é permitido ter filhos e/ou filhas, negar a responsabilidade da paternidade e seguir a vida como se a paternidade não existisse. Em contrapartida, uma vez que uma mulher se torna mãe, a vida dela será marcada para sempre com julgamentos, principalmente quando age como um homem agiria.

Esse texto foi apenas uma proposta para repensar o conceito “mãe narcisista” que vem sendo utilizado vastamente em espaços públicos presenciais e/ou virtuais para identificar mães que não se comportam de acordo com o que o patriarcado identifica como uma mãe exemplar. Isso não significa dizer que os filhos e as filhas não sofram com a falta de empatia, negligência, individualismo e outras características traumáticas provenientes dos comportamentos de suas mães (e também dos seus pais); contudo, julgar de forma diferente homens e mulheres que se comportam de modo semelhante diante da paternidade e da maternidade é no mínimo injusto com as mulheres.

Por fim, eu compreendo que espalhar conceitos sem refletir sobre eles é inadmissível para analistas do comportamento, uma vez que nós trabalhamos com a operacionalização dos conceitos e os transtornos de personalidade do grupo B são diagnosticados até o momento presente a partir dos julgamentos das/dos profissionais em questão. Quando utilizamos determinados conceitos, precisamos ser mais cuidadosas/os, pois a utilização indiscriminada de termos psicopatológicos pode levar a uma estigmatização das mulheres (e de grupos minoritários). A psicologia – e a maioria das áreas da saúde – possui uma história centrada no sexo masculino; porém, a maioria das profissionais da área são mulheres. Por isso, nós temos condições favoráveis para repensar, questionar e mudar nossas práticas a partir de análises no campo da biologia/fisiologia, da história de vida e principalmente das práticas culturais dos indivíduos – principalmente práticas que cerceiam e tolhem as mulheres.

Referências

Alvarenga, M. A. S.; Flores-Mendoza, C. E.; & Gontijo, D. F. (2009). Evolução do DSM quanto ao critério categorial de diagnóstico para o distúrbio da personalidade antissocial. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 58(4), 258-266. https://doi.org/10.1590/S0047-20852009000400007

Associação Psiquiátrica Americana – APA (2022). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais: DSM-5TR. Porto Alegre: Artmed.

Beauvoir, S. (1949/1970). O segundo sexo: Fatos e mitos. Difusão Europeia do Livro.

Cozby, P. C. (2003). Métodos de pesquisa em ciências do comportamento. São Paulo: Editora Atlas.

Esbec, E.; & Echeburúa, E. (2011). La reformulación de los trastornos de la personalidad en el DSM-V. Actas Esp. Psiquiatr, 39(1), 1-11. http://www.psi.uba.ar/academica/carrerasdegrado/psicologia/sitios_catedras/practicas_profesionales/820_clinica_tr_personalidad_psicosis/material/esbec.pdf

Goldstein, W. N. (1985). DSM III and the narcissistic personality. American Journal of Psychotherapy, 39(1), 4-16. https://doi.org/10.1176/appi.psychotherapy.1985.39.1.4

Holmes, J. (2001). Narcisismo. Portugal: Almedina.

Miranda, A. S. C. (2020). Narcisismo e perturbação de personalidade narcísica: aspectos clínicos e diagnósticos. Dissertação de candidatura ao grau de Mestre em Medicina, submetida ao Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar – Universidade do Porto.

Nicolodi, L. G.; Hunziker, M. H. L. (2021). O patriarcado sob a ótica analítico-comportamental: considerações iniciais. Revista Brasileira de Análise do Comportamento, 7(2), 164-175. http://dx.doi.org/10.18542/rebac.v17i2.11012

https://www.educamaisbrasil.com.br/enem/historia/o-mito-de-narciso

QG Feminista. O que é o Patriarcado. https://qgfeminista.org/o-que-e-o-patriarcado/

Escrito por:

Ana Clara Almeida Silva

Psicóloga, Doutoranda e Docente do curso de Pós-Graduação em Análise Comportamental Clínica e no curso de Formação em FAP do IBAC.

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